São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Entre a sombra e o escuro da noite

MÔNICA RODRIGUES COSTA
EDITORA DA FOLHINHA

"Zona de Sombra" é o novo livro de Claudia Roquette-Pinto, poeta ainda não muito conhecida do público, mas lida por seus contemporâneos.
Carlito Azevedo, autor de "As Banhistas", capta o Leitmotiv do livro anterior da poeta, "Saxífraga" (Salamandra, 93): "Tal como Williams, e os 'objetivistas' em geral, Claudia pratica em seus poemas uma operação que consiste em isolar os objetos de seu contexto original, que os banaliza, para observá-los (e dá-los a ver) em sua inteira estranheza, coisa-em-si".
Augusto Massi, na resenha "Dilemas Líricos" (Mais!, 3/12/95), aponta para a importância da poesia de Roquette-Pinto na cena brasileira, como tendo uma dicção de "sensualidade plástica".
Régis Bonvicino apresenta "Zona de Sombra" como um livro que revela poesia de "reflexão e percepção finas".
A lente fotográfica da poeta traz a perspectiva lírica que prioriza o sentido da visão -palavras e assuntos são táteis. Ela escreve de dentro, de um interior que se funde com os objetos, como no poema "Em Surdina", cuja bailarina faz um movimento que vem de dentro, "como se um vento (ou/ o que, íntimo, levita)/ soprando de dentro".
Nos poemas que se destacam entre a zona de sombra, densos de nuvem, neblina e aguaceiro, e o escuro da noite -com iluminações meteóricas, a transparência de vidro, espelhos e cristais-, a poeta faz soar a dicção de Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros, Haroldo de Campos, Paul Celan, citados nos poemas de seus livros.
Como se, para fazer poesia, fosse indispensável falar de literatura. Seus poemas discutem questões de representação, com alusões à pintura -Picasso, Chagall e outros autores que enfatizam a perspectiva individual.
A poeta está preocupada com a redefinição do objeto, sua colocação no espaço. Parece ter a obsessão de representar a representação. Trata-se, desde "Os Dias Gagos" (edição da autora, 1991), seu livro de estréia, de auto-observação e observação do cotidiano.
Ambíguo, "Zona de Sombra" toma a expressão também no sentido literal, discutindo nos poemas idéias que estão naturalmente afastadas da claridade da "água-ouro (vinagre do sol)".
A poeta volta-se sobre a referência, tomando a tela, a cena no teatro, o rio da literatura, a terceira margem, "a mão nua abrindo o fio/ (começa comigo) a/ costura invisível/ do rio", como cenários.
O livro é dividido nas seções "fósforo", "peças", "zona de sombra" e "a extração dos dias". A seção "zona de sombra", que coincide com o título, é composta de 13 poemas, fechados por "Últimas Flores", que revela a observação de um quadro em que se vê a natureza morta através do vidro.
A epígrafe, de René Char, anuncia o lugar de observação: "Só podemos viver no entreaberto,/ exatamente sobre a linha hermética/ de partilha da sombra e da luz".
Roquette-Pinto retira das frases objetivas -"um outono/ rente à janela"- a perspectiva lírica. Um dos recursos é a fusão de sentidos. A imagem construída em "O Porvir" é "um cavalo de vidro, não/ de transparência imediata:/ opalino/", mas "antes, as ancas, esferas/ brancas (como em paolo ucello)". O vidro, o espelho, a pele, a tela, a cena, o que está à superfície são matérias de poesia, assim como a palavra na página.
O tempo é na maioria das vezes o entardecer e a noite insone, como em "Os Reinos", o "lusco-fusco", que a poeta define como "hora aveludada", em que o dia se veste de uma pele de luz, ou em que o sujeito se vê às cegas navegando na pele da água, sobre o leito do rio, entre lençóis.
Presente em muitos poemas, a água, ora jorro ora superfície, como na "palavra-/ (sem rasgos na pele da água)/ superfície", em que os parênteses colocados no centro de um substantivo composto criam uma sintaxe original.
Roquette-Pinto formula uma poesia de sentido fugidio, mas feita da carnadura das frutas, flores, legumes e pétalas. Põe a palavra em questão, ao checá-la detidamente em sua superfície concreta, rugosa, tátil. Antitética, "assim a palavra retorna/ à sua íntima forma".

Texto Anterior: Tradutor lê um soneto
Próximo Texto: HOBSBAWM; ARCHIVOS; ENSAIOS; SÃO PAULO; CACHORROS; WOOLF; LANÇAMENTO 1; LANÇAMENTO 2; LANÇAMENTO 3; REVISTA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.