São Paulo, domingo, 15 de junho de 1997
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Imaginários de vida e morte

JUREMIR MACHADO DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A revolução está morta. Viva a revolução. A morte transforma-se com o tempo. O historiador Michel Vovelle se embrenha, outra vez, no coração dos loucos da aldeia: imagem e imaginário. Expoente das "mentalidades", especialista na Revolução Francesa, Vovelle é um narrador dedicado a reconstruir cotidianos soterrados pela marcha dos séculos com ajuda de métodos heterodoxos.
Em "Imagens e Imaginário na História - Fantasmas e Certezas nas Mentalidades desde a Idade Média até o Século 20", retoma dois temas de sua predileção: morte e revolução. Mas é a vida que desfila nas suas páginas, fabricando mitos, derrubando verdades, gerando ilusões, criando rupturas e mantendo na "longa duração" sensibilidades resistentes, mas nem por isso imutáveis.
Como bem destaca Renato Janine Ribeiro, no "Prefácio a Vovelle", o autor da "Breve História da Revolução Francesa" se situa entre os marxistas (debruçados sobre os momentos de aceleração) e os herdeiros dos Annales (mais interessados na continuidade). Vovelle busca a sintonia entre essas duas falsas oposições. A história das mentalidades, de resto, tem sido a grande responsável pela demonstração do eterno fluxo contraditorial dos costumes, entre a inércia e o movimento imperceptível, porém irrefreável.
Os textos dos historiadores das mentalidades carregam a sedução dos romances. Vovelle, a exemplo dos mais célebres medievalistas, saltou do positivismo do documento escrito para analisar a iconografia da morte e da Revolução, afundando-se nas veredas metodológicas abertas pelos estudos de iconologia de Erwin Panofsky. Assim como Georges Duby, Vovelle domina rigorosamente e explicita os seus mecanismos de interpretação, mas o leitor, ao penetrar na teia narrativa, não vê mais os andaimes, flutuando ao sabor dos acontecimentos. Quase se ouvem os gritos dos personagens, quase se sente o cheiro daquelas mulheres engolfadas pela Revolução.
Rastros de violência simbólica
"Joseph Sec - A Confissão de um Burguês Vencedor" é um capítulo digno de Stendhal que, baseado nas imagens do monumento-cenotáfio desse comerciante de Aix-en-Provence, filho legítimo do século 18 (1715-1792), descreve a trajetória de um arrivista, o percurso de um homem da pobreza à fortuna, conjugando um lugar social marcado pelas obras de caridade, membro da confraria dos penitentes cinzentos e pela descoberta do Iluminismo. A arte funerária encomendada por Sec representa um elogio ao progresso.
Neste cartesiano mundo dos conceitos, Vovelle lê imagens. Diverte-se com elas. Esculpe o passado. Impossível ficar alheio à riqueza do ensaio a propósito do "Pênis de Danton ou Massacre e Sexualidade - Violência e Fantasias Eróticas nas Leituras da Revolução Francesa". Pode-se articulá-lo com a "Mulher-Maravilha - O Púbis da Remobilização", num salto de dois séculos, mas, principalmente, numa reflexão sobre os contextos da falocracia. Michel Vovelle não examina somente imagens sacralizadas pelos arquivos: manuseia histórias em quadrinhos, instala-se diante da televisão para acompanhar as aventuras da Mulher-Maravilha.
Na mesma linha, "A Morte na Idade Média", organizado por Herman Braet e Werner Verbeke, apresenta textos de Philippe Ariès, do próprio Vovelle, Daniel Poirion etc. a partir de um colóquio internacional realizado em Leuven no final dos anos 70.
Ariès foi o mestre da decifração dos imaginários da morte. "O morto é aquele que passa, qui transit: o 'passageiro'. Qual é o destino da sua viagem?". Sempre foi assim? É assim na época atual? O Ocidente espelha a mudança na morte dos símbolos. As palavras enganam, nuançadas por fenômenos recorrentes, matizadas pela historicidade da vida. Ariès é incontornável para a compreensão de certas concepções do além.
"Imagens e Imaginário na História", por seu turno, traz um ingrediente muito especial: a fúria arrasadora das "imagens" impiedosas elaboradas para desancar o poder e os poderosos, caricaturas fulminantes descritas no "Pênis de Danton...". Luís 16, o porco na própria merda; Maria Antonieta fustigada por trocadilhos: de Autriche (Áustria) a Autruche (avestruz) e, daí, a galinha da Áustria, ladra, loba, hiena, vadia.
No conflito que opôs o "dever-ser" às mentalidades, perderam os que não souberam associar concepções apenas em princípio inconciliáveis. As simplificações, típicas da ciência moderna, fizeram das mentalidades o terreno do conservadorismo, e do marxismo o campo do progresso. Agora, a exigência de complexidade redescobre o "equilíbrio dos antagonismos", conforme a fórmula extraordinária de Gilberto Freyre.
E a imagem, execrada ao longo dos séculos, cada vez mais ganha importância como fonte legítima. Interdisciplinar, a história das mentalidades já forjou muitos clássicos alheios às etiquetas, entre os quais "O Grande Massacre dos Gatos", de Robert Darnton. "Imagens e Imaginário na História" servirá aos estudiosos que se aventuram nas movediças fronteiras das ciências sociais. Reaprende-se com Michel Vovelle, que a morte, atravessando revoluções, não morre jamais, simulacro da igualdade e da diferença.

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