São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 1997
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Mudanças e mudanças (2)

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - A desculpa mais frequente para explicar as mudanças no pensamento e no comportamento político do presidente resume-se, esquematicamente, à decantada queda do Muro de Berlim. Ou seja, o Tratado de Tordesilhas do nosso século ruiu, o mundo mudou. E como dizia Virgílio, na virada do antes e depois de Cristo, "tempora mutantur et nos cum illis".
O argumento pode prevalecer no varejo. Tal como mudamos o corte de cabelo, o nó da gravata, a largura das calças e o tipo de cueca. Mais: algumas coordenadas sociais e políticas são periodicamente reavaliadas e, em consequência, a prática social e política busca alinhamento com a nova ordem.
Não fosse assim e ainda estaríamos na escravidão e no império. Quem sabe, na colônia. Contudo há mudanças que são mais do que alinhamentos, mais do que estratégias de poder. Basta citar uma delas, que fere um dos princípios fundamentais da estrutura moral e jurídica da sociedade humana.
Refiro-me ao princípio multissecular que proíbe a lei de retroagir. A emenda da reeleição, arrancada de forma tão condenável de um Congresso vulnerável à venda de votos, retroage para beneficiar um presidente cujo principal ministro foi citado formalmente como corruptor de congressistas.
São dois crimes. Um, até que desculpável, que foi o da corrupção em si. Por essas e outras o dinheiro foi chamado de excremento do demônio. Bota-se a culpa no Pai das Trevas (gosto muito dessa expressão, Pai das Trevas) e tudo fica resumido na fraqueza daquilo que Shakespeare chamou de "mil acidentes naturais da carne".
O outro crime é a aberração moral, a agressão a um princípio que protege a sociedade e o indivíduo da prepotência legal. As tiranias sempre começaram pela violação desse princípio. Basta um mergulho na história para verificarmos que o príncipe sempre se coloca na aurora de um novo tempo: o dele.

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