São Paulo, sexta-feira, 20 de junho de 1997
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Sugestão para o hino oficial da globalização

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Os dez anos de Sabrina precisavam ser comemorados: alugou-se o salão de festas do prédio, encomendou-se o bufê adequado (pipocas, cachorros-quentes, pizzas e refrigerantes) e um som incrementado. Há muito não frequento festas, nem de adultos nem de crianças.
Preparei-me franciscanamente para suportar o volume do som, o repertório que combinava com o bufê, as luzes que piscariam de acordo com o ritmo de cada música -uma complicada parafernália eletrônica que é medida em toneladas, como os navios e as safras de soja.
A festança ia em alta. Ainda no elevador, senti tremerem as vigas que sustentam o prédio: de longe, parecia uma série de explosões, de perto parecia que eu afinal penetrava na hipérbole muito citada agora, a do olho do furacão.
Quando ergueram o edifício ao lado, botaram em funcionamento um diabólico bate-estaca que fazia tremer as paredes. Moradores vizinhos, preocupados com a segurança e com os ouvidos, apelaram para as autoridades, deu em nada. Ninguém se lembrou de dançar ao som do bate-estaca, talvez pela ausência de letra.
Depois de ouvir tremer paredes e vigas do prédio, eu próprio tremi quando examinei o salão. Crianças de 8 a 12 anos, esbaforidas, caras devastadas, se agitavam ao som da "Macarena" -que tinha a vantagem de ser cantada em vernáculo. A maioria das músicas era mesmo em inglês -mas se fosse em sânscrito dava na mesma, o entusiasmo seria igual, talvez maior.
Lembrei uma velha história que guardo da infância e que muito me impressionou, na realidade, me impressiona até hoje. Numa cidade do interior, onde parte da população se recusava a ser provinciana, foi marcado um baile para quebrar a tradição que fazia da sexta-feira um dia especial.
O pagode seria num enorme terreiro onde antigamente os escravos secavam o café. A proposta da festa era desafiar a crendice local e provar que a Sexta-Feira Santa não era de nada. Nesse dia, nem os trens apitavam. Os sinos emudeciam, ninguém falava alto. Era um atraso que precisava ser desmascarado.
Todos então dançariam até a meia-noite. Ao chegar o Sábado de Aleluia, quando em outras cidades os sinos tocassem e a vida voltasse ao normal, o baile acabaria.
Acontece que bateu meia-noite e ninguém parou, pelo contrário, a animação tornou-se mais assanhada. Dançavam em roda uma cantiga folclórica e local: "Ai, meu bendegó, ai, meu bem xodó! Quero ver minha morena dançar o catimbó!".
Duas horas da manhã e ninguém parava: "Ai, meu bendegó, ai, meu bem xodó!". Quatro, cinco horas da manhã, o sol nasceu, e ninguém parava, ninguém deixava o terreiro, todos prisioneiros da corrente diabólica.
Entardeceu, logo anoiteceu -e o baile continuava, ninguém pensava em parar.
Amanheceu novamente e novamente anoiteceu, e aquela fatia da humanidade, suada, esbaforida, caras possuídas pelo ritmo sempre igual, continuava a cantar e a dançar: "Ai, meu bendegó, ai, meu bem xodó!".
O chão do terreiro começou a ceder, os pés que marcavam o ritmo iam socando o chão -e todos, sem perceber, foram afundando, afundando, dia e noite, semanas e meses, a turma não parava de cantar e pular, "ai meu bendegó, ai meu bem xodó!". E assim, muitos anos se passaram.
O chão esmagado pelos pés que não paravam foi se abrindo, abrindo, a terra cobriu o buraco que sepultou para sempre a corrente enfeitiçada.
Até hoje -diz a lenda-, quando alguém passa pelo local e bota o ouvido no chão, há de escutar, vindo das entranhas da terra, o canto monótono e ritmado: "Ai, meu bendegó, ai, meu bem xodó!".
E séculos se passarão e a maldição continuará, com aquele grupo assombrado em torno de si mesmo, cantando e dançando o bendegó e o seu xodó.
Acredito que a história tenha raízes populares antigas e universais. Ela deve ter inspirado o "Anjo Exterminador", de Buñuel, quando a elite de uma cidade espanhola se reúne numa festa, a noite avança, o primeiro convidado resolve sair, de repente se lembra que precisa conversar com alguém e volta, depois outro faz o mesmo.
Naturalmente, todos acabam prisioneiros da festa, não há nada que os impeça de sair mas ninguém sai, dormem no chão, furam as paredes em busca de água, náufragos da maldição.
Pensei nisso quando vi aquelas meninas e meninos, esbaforidos, pulando ao som da "Macarena". Uma jovem mãe me olhou, desconfiou do meu espanto e confessou que também ela sentia saudade das baladas do Elvis Presley.
Daqui a 20 anos alguém sentirá falta da "Macarena". E a humanidade caminhará para o Grande Som Globalizado que nos unirá num satânico e suado cordão, tragado por infinito abismo. Quando os Grandes Frios chegarem e a Terra rolar como um cadáver gelado pelo espaço sem fim, não haverá ninguém para escutar, distante e profundo, o eco perdido de uma perdida humanidade: "Ai, meu bendegó, ai, meu bem xodó!"

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