São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Contradições marcam sentença de Rainha

FERNANDA DA ESCÓSSIA
ENVIADA ESPECIAL A PEDRO CANÁRIO

Contradições, amizades e violência marcam a história da condenação de José Rainha Jr. a 26 anos e seis meses de prisão há dez dias pelo tribunal de júri de Pedro Canário (a 270 km de Vitória, ES). O líder do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foi considerado co-autor das mortes do fazendeiro José Machado Neto e do policial militar Sérgio Narciso da Silva, no dia 5 de junho de 1989, durante invasão do MST na fazenda Ypueiras, propriedade de Machado.
Em um dos inquéritos abertos para apurar o caso, o civil, Rainha foi inocentado. No outro, o militar, foi denunciado com outras nove pessoas -uma delas morreu e oito fugiram.
Entre os indiciados estava a principal testemunha de acusação, José Jorge Guimarães, o Zé do Coco, que não chegou a ser denunciado. Zé do Coco saiu de casa, segundo sua família, devido a ameaças. A família não diz de quem, se dos fazendeiros, se do MST. Há indícios de que as mortes de pelo menos mais três líderes rurais, em 89, tenham relação com o caso.

1 - O motivo
No início do processo contra José Rainha Jr. está a fazenda Ypueiras, uma área de 300 alqueires -1.500 hectares- pertencente ao fazendeiro morto, José Machado Neto, em Pedro Canário.
O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) considerou que a fazenda era improdutiva e resolveu invadi-la em junho de 1989. A família diz que a fazenda produzia leite. A invasão culminou com as duas mortes.
A Folha visitou a fazenda, hoje dividida entre a viúva, Aline Castro Machado, e as cinco filhas. A área ocupada pelos sem-terra não é plantada nem serve de pasto. É coberta por uma mata fechada que, segundo a família, é mantida como reserva florestal obrigatória.
Na curva da estrada onde aconteceram as mortes, a viúva mandou colocar duas cruzes, substituídas e pintadas dias antes do julgamento. A estrada de terra que dá acesso ao local está coberta de capim, e, em alguns pontos, a mata dificulta a passagem dos carros.
Dois empregados fixos e um vaqueiro trabalham no local. Depois da morte do marido, Aline Machado trocou a criação de gado leiteiro por gado de corte.
A família do fazendeiro mora em Conceição da Barra e tem outras fazendas no município. Procuradas pela Folha, Aline Machado e as filhas se recusaram a informar o tamanho do rebanho -"não vem ao caso", disse a viúva.
Ela não quis comentar o resultado do julgamento. Disse apenas que considerou justa a condenação e negou que o júri tivesse um conteúdo político.
"Já ficamos tanto tempo em silêncio, para que falar agora? Depois do último julgamento, vamos dizer o que sofremos nestes anos todos", afirmou Rosângela, 25, filha caçula do fazendeiro morto.
O pai do soldado Sérgio Narciso da Silva, Isaías Narciso da Silva, 68, não foi ao julgamento e não deve ir ao próximo. Disse esperar "justiça" para a morte do filho e afirmou que, na época do crime, o boato corrente era que Rainha tinha participado da invasão.

2 - A defesa
O álibi apresentado pela defesa de Rainha afirma que, no exato dia do crime, 5 de junho de 1989, ele estava num acampamento do MST no sertão do Ceará.
Um dos principais líderes do MST no Espírito Santo à época, Rainha afirma ter sofrido um atentado e ter sido "transferido" para o Ceará, por medida de segurança e para ajudar a organização do movimento no Estado.
Os três caíram em contradições com datas, locais e distâncias. Os dois vereadores pediram para retificar declarações anteriores, o que foi aproveitado pela acusação no julgamento de Rainha.
O coronel da Polícia Militar Sebastião Jorge Cavalcante Leandro, chefe da Casa Militar do governador Tasso Jereissati (PSDB), trouxe um documento confirmando a presença de Rainha numa reunião com o governador no dia 30 de maio de 1989.
À época, Leandro era chefe da segurança. Seu depoimento foi considerado firme pela própria acusação, mas não garantiu o álibi para o dia 5 de junho.
O deputado estadual Eudoro Santana (PSB-CE) afirmou ter intermediado a reunião entre Rainha, outros líderes do MST e o governador e afirmou ter visitado o acampamento dos sem-terra no sábado, 3 de junho, dois dias antes do crime.
Na mesma data, a testemunha José Jorge Guimarães, o Zé do Coco, disse ter visto Rainha no caminhão com os sem-terra que ocuparam a fazenda Ypueiras, na noite de sábado para domingo.

3 - O processo
Um inquérito civil e um IPM (Inquérito Policial Militar) foram abertos para apurar as mortes do fazendeiro José Machado Neto e do PM Sérgio Narciso da Silva, em Pedro Canário (ES).
A Folha teve acesso a ambos, anexados aos autos do processo. O inquérito civil, assinado pelo então delegado do município vizinho de Linhares, Luís Fernando Faustini, "inocenta" Rainha.
"Há, nos autos, menção a outros nomes, como por exemplo de João Ramalho e José Rainha, considerados como líderes do movimento dos sem-terra. Entretanto não recai sobre eles qualquer responsabilidade no crime ora apurado", diz o relatório do delegado.
A apuração militar foi aberta pela 2ª Companhia de Polícia Militar de São Mateus para apurar a morte do soldado Sérgio Narciso, integrante da unidade.
Após as investigações, o IPM pediu o indiciamento de quatro pessoas como autores do crime e de 18 pessoas, entre elas José Rainha Júnior, como co-autores.
Testemunhas ouvidas no IPM afirmaram que Rainha acompanhou, no caminhão, o grupo de sem-terra e que, depois das mortes, reuniu os invasores em outro assentamento e cantou com eles um hino do MST.
Não há um parágrafo específico do IPM sobre a participação de Rainha no crime ou de cada uma das 18 pessoas apontadas como co-autoras das mortes.
É justificado o indiciamento conjunto por, supostamente, terem ajudado "na articulação do movimento armado, através de inúmeras reuniões em templos católicos e residências; induzimento à guerrilha e posse da terra pela força das armas; organização de bando predisposto ao crime (...); transporte de invasores com intenção de praticar ilícitos penais".
Entre os co-autores, o IPM incluiu desde o bispo de São Mateus, dom Aldo Gerna até o caminhoneiro José Jorge Guimarães, o Zé do Coco, que transportou os sem-terra e se transformou na principal testemunha de acusação.
Gerna foi incluído como co-autor do crime porque várias reuniões preparatórias para a invasão da fazenda aconteceram nas igrejas de Pedro Canário e de Montanha, um município vizinho do local das mortes.
"Rainha era um dos principais dirigentes do MST à época e, segundo nossas investigações, participou da invasão. Acho que a condenação dele foi justa, porque houve o crime e todos estão sujeitos à lei", afirmou o major Jones Mattos, responsável pelo inquérito militar e hoje subcomandante do Batalhão de Polícia Militar de Aracruz.
O relatório do IPM só foi concluído no dia 20 de novembro do mesmo ano. O relatório do inquérito civil foi concluído em 23 de junho de 1989 e encaminhado à juíza Vitória Consuelo Carreira de Lima, de Conceição da Barra, então responsável por Pedro Canário.
O delegado pediu a prisão de três dos suspeitos. Outros quatro já haviam sido presos. José Bezerra de Souza, o Zé Paraíba, citado como organizador da invasão e responsável pelas mortes, fugira.
Embora o relatório inocentasse Rainha, o promotor Húlio Azi Campos o incluiu na denúncia como um dos dez réus e pediu a prisão do líder do MST.
"Há provas, ainda, de que o denunciado José Rainha Jr., um dos líderes dos invasores, organizou o grupo de fugitivos no assentamento do 'Engano', quando cantaram o hino 'O risco que corre o pau, corre o machado'."
A denúncia foi aceita integralmente pela juíza Vitória Consuelo Carreira de Lima, que decretou a prisão preventiva de Rainha e de mais quatro denunciados no dia 30 de junho de 1989.
Procurada pela Folha, Vitória disse não se lembrar exatamente do que, no inquérito civil, motivou a decretação da prisão do líder dos sem-terra.
"Na época, me baseei na lei e no processo, nos depoimentos. Tudo aconteceu há oito anos. Como é que eu vou me lembrar de cada processo, em mais de 30 anos de carreira?", pergunta a juíza, hoje titular da comarca de São Mateus.
Quando Rainha foi preso em Imperatriz (MA), em junho de 1990, o juiz de Conceição da Barra, José Henrique Decottignies, soltou-o por considerar que não havia contra ele provas de autoria do crime.
"Vi detidamente este processo (...) e concluí que não existem indícios de autoria atribuindo ao acusado José Rainha Jr. a prática do crime, sendo certo até (...) que o referido acusado entrou apenas de 'carona' ", afirmou o juiz.
Em agosto de 1993, o então juiz de Pedro Canário, Tasso de Castro Lugon, emitiu a sentença de pronúncia de Rainha, considerando-o como "organizador do grupo e participante da ocorrência" e dos outros oito réus. Verino Sossai, denunciado pelo promotor, morrera em 1989.

4 - "Retrato falado"
As diversas descrições físicas de José Rainha, já na época do crime um dos principais líderes dos sem-terra no Espírito Santo, diferem entre si.
Elas foram feitas por pessoas que dizem tê-lo conhecido apenas no dia imediatamente anterior à invasão da fazenda Ypueiras ou depois do tiroteio que resultou nas duas mortes, quando os autores do crime teriam cantado um hino e fugido de Pedro Canário.
Uma das principais testemunhas de acusação, o caminhoneiro José Jorge Guimarães, o Zé do Coco, que transportou os sem-terra até a fazenda Ypueiras, de José Machado Neto, disse que, no caminho, um homem subiu no caminhão e que Zé Paraíba -principal organizador da invasão- afirmou que aquele era José Rainha.
Em depoimento à Justiça, o caminhoneiro descreveu Rainha como uma "pessoa alta, de rosto bem cheio, embora não fosse redondo, sem barba e sem bigode, moreno bem claro, mais ou menos gordo, aproximadamente 70 quilos, cabelos castanhos cacheados bem cheios".
Firmo Pereira Neto, também denunciado como participante nas duas mortes e foragido, afirmou ter conhecido Rainha apenas no dia da invasão da fazenda Ypueiras. Pereira descreveu-o como "claro, de estatura mediana".
Outro réu, Gilberto Jesus Silva, o Cascabulho, disse na delegacia que, durante a invasão, soube que ali estava "um tal de José Rainha", descrito por ele como "claro, médio, meio alto, meio novo".
Em depoimento à Polícia Militar, Silva descreveu o líder dos sem-terra como "claro, magro, boa altura, bem vestido".
Noir Rodrigues Teixeira, também participante da invasão da fazenda Ypueiras, afirmou ter visto no acampamento um homem "claro, magro, cabelos cacheados, bem trajado" e que, "segundo consta, se tratava de um tal de José Rainha". Teixeira não foi denunciado pelo crime.
Ermínio da Silva dos Santos disse, em depoimento à Justiça, que "está na boca do povo que quem atirou foi o José Rainha". Perguntado sobre as características físicas de José Rainha, disse que ele era branco, de 1,70 m de altura.
Querubim Fernandes da Silva, participante da invasão ouvido pela Polícia Militar, afirmou ter conhecido no acampamento dos sem-terra um homem "alto, magro, de barba, cabelo médio, cacheado, bem vestido", e que soube se tratar de José Rainha.
As descrições do líder do MST -feitas por pessoas que não conheciam José Rainha- apontam, enfim, para um homem de pele clara, estatura mediana e cabelo cacheado. Há controvérsias sobre se tinha ou não barba.
José Rainha Júnior tem aproximadamente 1,88 m, é magro e longilíneo, de cabelos pretos. Atualmente, usa barba e bigode.
Nos autos do processo, o líder do MST aparece em fotos feitas em Fortaleza, no Ceará, dias antes do crime de Pedro Canário, já de cabelos pretos, barba e bigode.

5 - A surpresa
O agente do MST que teria confirmado a participação de Rainha na ocupação da fazenda Ypueiras, segundo o depoimento do sindicalista Verino Sossai no quartel da PM, foi localizado pela Folha e negou ter dado tal declaração.
Damian Sánchez Sánchez, 41, o Damião Sanchec Sanchec citado no processo, é coordenador da Comissão Pastoral da Terra em São Mateus. Ele foi ao julgamento e disse ter ficado "surpreso" quando ouviu seu nome nos autos.
Sossai, sindicalista no município vizinho de Montanha, assassinado em 19 de julho de 1989, disse em depoimento à PM, no dia 6 de julho do mesmo ano, que conversara com Sánchez e que este havia dito que Rainha participara do episódio da Ypueiras.
"Não sei o que levou Sossai a dizer isso, não sei nem se ele disse isso. Sei que ele já estava recebendo, nessa época, muitas ameaças de morte", afirmou Sánchez.
Espanhol radicado há 17 anos no Brasil, Sánchez nunca prestou depoimento e disse nunca ter sido procurado nem pela acusação nem pela defesa. Citado como co-autor das mortes, ele disse que organizou reuniões do MST, mas negou ter invadido a Ypueiras. À época, era assessor da prefeitura de Jaguaré, no norte capixaba.
Também indiciado no IPM como co-autor das mortes, o assessor parlamentar João Batista Marré, 40, nega qualquer participação.
Organizador do MST no Espírito Santo junto com Rainha, Marré dirigia a Pastoral da Terra de São Mateus à época do crime e confirmou a versão da defesa: disse que Rainha sofreu um atentado em 1988 e que, por segurança, foi transferido para o Ceará.
Marré é hoje assessor do deputado estadual José Otávio Baioco (PT). Disse que, após a morte do fazendeiro, ele e outros líderes rurais receberam ameaças de morte.
O bispo de São Mateus, dom Aldo Gerna, também indiciado no inquérito militar como co-autor das mortes, foi procurado pela Folha e não foi encontrado.

6 - A arma
A arma que matou o fazendeiro e o PM não foi encontrada. Balas retiradas dos corpos teriam saído de uma carabina calibre 0,44.
Dois exames de balística, cujos laudos constam do processo, informam que os projéteis não partiram da carabina Winchester 0,44, número 640.754, supostamente encontrada no acampamento dos sem-terra na fazenda Ypueiras.
Também foram apreendidas no acampamento uma espingarda Rossi 32, duas espingardas de encher pela boca, facões, enxadas, uma bandeira do MST, cartuchos calibre 0,44 e pedaços de chumbo para munição.

7 - A cidade
O nome de um riacho que corre em Floresta do Sul, perto da fazenda Ypueiras, conta parte da história de Pedro Canário: Córrego do Sangue, assim batizado, dizem os mais velhos, devido às mortes dos posseiros expulsos nos anos 50.
A tradição autoritária do norte do Estado é mais antiga: mesmo após a abolição, líderes negros continuaram sendo perseguidos e mortos por feitores das fazendas de café. Na primeira metade deste século, a pecuária assumiu o comando da economia local. Hoje, Pedro Canário tem 23 mil habitantes e quase 40 mil cabeças de gado.
Nos anos 60 e 70, indústrias madeireiras chegaram à região. Posseiros, desempregados pelas madeireiras e agricultores falidos deram origem a bolsões de miséria, fomentando o início de um forte movimento sindical no campo.
"Rainha é herdeiro da tradição de líderes do norte capixaba. Não é um caso isolado, é um retrato da região", diz Maciel Aguiar, secretário de Cultura. Rainha é de São Gabriel da Palha (ES) e foi dirigente do Sindicato de Trabalhadores Rurais em Linhares (ES).

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