São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Sob o véu da melancolia

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Depois de ser atropelado certa vez por um carro em Paris, o escultor ítalo-suíço Alberto Giacometti (1901-1966), mesmo com a perna ferida, teve de imediato o seguinte raciocínio: "Enfim, alguma coisa me aconteceu!". Essa anedota, relatada por Jean-Paul Sartre (1905-1980) em "As Palavras", ilustra a tonalidade predominante nos contos de Marco Antônio Bin em sua obra de estréia, "A Paixão Inútil".
O livro é composto por uma dúzia de contos sem título -numerados, apenas, de 1 a 12. Na maioria, com efeito, os personagens, todos masculinos, constroem-se sob um véu de extrema melancolia, com dificuldades para extrair de sua existência cotidiana algo que possa justificá-la. Não por acaso, o título do volume é retirado de uma assertiva do próprio Sartre: "O homem é uma paixão inútil".
Trata-se de uma obra literalmente em preto-e-branco, da capa à opção pelo uso monocórdio de técnicas narrativas. Tudo regado, por assim dizer, pelas visões de seres humanos à beira da suprema simplicidade: um bancário ambicioso, um trabalhador de fábrica de velas, um morador desempregado de periferia, assim em diante.
Isso não significa que os anseios desses personagens sejam, sempre, rasteiros. No conto "Oito", por exemplo, o maior objetivo de um policial é lançar o seu cavalo sobre alguma multidão, e ele não perde a oportunidade de fazê-lo após um jogo de futebol no estádio do Pacaembu.
Em "Sete", Bin adentra os sentimentos prosaicos de Lee Osvald nos instantes que precederiam os tiros fatais dirigidos ao presidente dos EUA John Kennedy.
É curiosa, igualmente, a inconformidade crescente manifestada por um homem diante do zelo e da correção com que trabalha a tripulação do ônibus que ele toma diariamente.
Outro exemplo está em "Dois": é a deliberação com que, de repente, um morador de morro até então devoto resolve tornar-se ladrão pouco antes do culto dominical que sempre frequentava.
Os momentos mais fortes do livro, porém, ao menos no que diz respeito à linguagem, estão nas histórias "Cinco" e "Dez", montadas, respectivamente, sobre um diário preenchido entre a véspera do Natal e a passagem de um reveillon e um outro diário preenchido durante estadia de alguns dias num hotel de Buenos Aires.
Afirma o autor em "Cinco": "Eu escolhi assim: remeto-me a ti de uma distância que nos salvaguarda. Se essa emoção jovial me envolve, sei que a ti também atinge, e certamente ela só pode atuar pela recordação, ou para um futuro presumível -eis o nosso pacto de coexistência".
Em "Dez", se lê: "Meu sofrimento é o outro lado da minha obra, me conduz à inoperância, ao desconsolo, à angústia profunda por saber-me livre e não agir, e por tudo isso me expõe como um ser que mergulha fundo e que não tem outro caminho senão recomeçar".
Dada a evidente integração do autor a uma linhagem de espécie existencialista, não é de causar espanto que os trechos escolhidos e citados acima sejam justamente de anotações de algum personagem solitário. É na capacidade de exposição dos momentos de introspecção de uma pessoa que parece residir a maior força de estilo de Marco Antônio Bin.
PS: O autor comete em seu livro erros de português imperdoáveis, particularmente no uso da crase, do verbo haver e de concordâncias em geral. Pode parecer birra, mas não há nenhuma dúvida de que isso arranha a qualidade da obra.

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