São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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O mestre das figurações

Faz hoje cem anos que nasceu o pensador alemão Norbert Elias

LEOPOLDO WAIZBORT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como os judeus que se julgavam assimilados, que se queriam cidadãos alemães cuja confissão judaica estaria restrita ao âmbito privado, Norbert Elias (22/6/1897 - 1º/8/1990), filho de judeus burgueses, filho do Segundo império, não titubeou na hora de se alistar como voluntário logo após o agosto de 1914. Tinha pouco mais de 17 anos, era alemão e, como um jovem alemão, estava pronto para morrer pela pátria e honrar sua bandeira. Elias pertence à geração dos expressionistas, dos que foram à Guerra e não voltaram. Em verdade, alguns poucos voltaram e, então, como disse Benjamin, encontraram "uma paisagem em que nada permanecera inalterado, a não ser as nuvens". Se ele teve a sorte de poder voltar, em pouco tempo seria forçado a perceber que, como judeu, sua cidadania só podia ser de terceira classe. Elias viveu a experiência da exclusão que daria sentido às análises das relações entre "estabelecidos" e "outsiders", um dos aportes importantes de seu pensamento.
Elias, que ia se habilitar como docente de sociologia com Karl Mannheim em Frankfurt, teve logo sua carreira abortada: o Seminário de Sociologia foi dissolvido pelos camisas-pardas no momento em que se preparava para ministrar a aula inaugural, em 1933. Desde então, repetiu a figura do judeu da diáspora.
O Seminário de Sociologia, capitaneado por Mannheim, funcionava no prédio do Instituto para a Pesquisa Social, então já sob a direção forte e segura de Max Horkheimer. Era famosa a hostilidade entre os grupos, apesar do espaço compartilhado. Mas havia algo de comum entre eles, além de um judaísmo já quase dissolvido por detrás de vidas burguesas de intelectuais. O projeto de Horkheimer aparecia no discurso de posse como diretor do Instituto, em 1931: a busca de uma interdisciplinaridade. O mesmo tateava Elias, que, por aquela época, ainda não tinha dado nome preciso para a coisa. O exemplo mais evidente, em ambos os casos, é a incorporação da psicanálise.
Norbert Elias só se tornou conhecido, e respeitado, nas décadas de 70 e 80. Foi então que sua obra mais extensa, "Sobre o Processo da Civilização - Investigações Psicogenéticas e Sociogenéticas", atingiu um grande público. O livro havia sido publicado em 1939. Escrito em alemão por um judeu, o livro não pôde ser vendido nem na Alemanha, nem na Áustria, e, por essa simples razão, permaneceu quase desconhecido. Só em 1969, ao ser reeditado na Alemanha, começou a chamar a atenção, e, ao aparecer como livro de bolso, em 1976, tornou-se um espetacular best seller. Ao mesmo tempo, foram surgindo as traduções para o francês e inglês. A partir de então, Elias saiu do ostracismo e começou a circular bastante e publicar ininterruptamente, até sua morte em 1990.
Muitos dos admiradores de Elias pretendem lhe atribuir um ineditismo absoluto. Mas, pelo contrário, Elias se encontra profundamente entranhado na tradição da sociologia alemã. Ele é uma figura significativa no que se poderia designar como sua segunda geração. Os pioneiros, nascidos nas décadas de 50 e 60 do século 19, foram os responsáveis pelas primeiras tentativas de legitimação da sociologia como ciência e de sua institucionalização enquanto disciplina. A segunda geração, nascida aproximadamente entre 1890 e 1905, encontrou já formulada a questão da sociologia, pronta para receber respostas que iriam variar de acordo com as escolhas, ênfases e direcionamentos de cada um.
O problema da civilização, que Elias irá destrinchar em seu livro, é um problema de sua época. Por um lado, a contraposição de "civilisation" e "Kultur", que ele discute na obra, encontrou sua encarnação mais pungente no conflito franco-alemão da guerra de 1914. Mas, paralelamente a esse registro político (ou prático, ou bélico, se quiserem), havia de se destrinchar, em uma chave mais propriamente científica, o fenômeno da civilização. A isto se dedicou Alfred Weber, com quem Elias foi estudar sociologia em Heidelberg entre 1925 e 1930. Desde pelo menos o começo da década de 1920, todos os esforços de A. Weber estavam centrados na análise da "civilização"; mas isto significava, para ele, compreender nada menos do que o "processo da civilização", que seria, justamente, objeto da sociologia. Elias, como já mostra o título de seu livro, estava próximo dessas idéias. O segredo está, desse modo, relegado ao subtítulo. Nele aparece sua originalidade: "Investigações psicogenéticas e sociogenéticas". Lido nessa chave, o fenômeno viria a ganhar contornos absolutamente novos.
A psicogênese diz respeito ao desenvolvimento de longa duração das estruturas da personalidade humana e às transformações do comportamento. Elias está preocupado com as estruturas e mecanismos de regulação e controle dos afetos/impulsos, com a formação social do "superego". Suas análises abordam, sobretudo, a passagem dos mecanismos de coação exteriores para mecanismos interiores: uma espécie de internalização, disciplinarização de si.
Além disso, o que despertou enorme interesse pelo trabalho de Elias é a sua escolha dos materiais de análise, por meio dos quais desenvolve seu objeto no livro de 1939. Ao preparar seu trabalho sobre a sociedade da corte, Elias se deparou com os manuais de etiqueta, com a regulação dos modos de se comportar. Assim, ao estudar o processo da civilização, ele utilizou um material bastante inusitado para apontar os mecanismos de coação e autocoação: como o uso dos talheres, as restrições a cuspir, os hábitos higiênicos etc., chamando a atenção, ao mesmo tempo, para o desenvolvimento de um espaço não mais público, para onde certas atividades deveriam se retirar. Sobretudo nas investigações psicogenéticas, Elias demonstrou uma sensibilidade privilegiada e uma percepção sempre desperta para os microfenômenos; o resultado disto é uma conjugação original de perspectivas micro e macrossociológicas.
A sociogênese, por sua vez, diz respeito ao desenvolvimento, a longo prazo, das estruturas sociais. Elias estava preocupado com as transformações da sociedade; tratou de relacionar o processo da civilização com o processo de formação e consolidação do Estado moderno. Este é visto como um processo de centralização rumo à monopolização: do território, do uso da violência, do direito a cobrar impostos, o que implica, por sua vez, em um crescente grau de dependência e funcionalização, coordenação, regulação e integração do conjunto dos processos sociais.
Há ainda, no entender de Elias, uma relação mútua de dependência entre sociogênese e psicogênese: elas são "aspectos interdependentes do mesmo desenvolvimento de longo prazo". Das duas dimensões e de suas dependências mútuas, Elias desenvolve uma teoria da civilização -enquanto teoria das transformações do comportamento e das estruturas da personalidade- e uma teoria da formação do Estado -enquanto teoria do desenvolvimento social. Elias entrelaça, portanto, a psicogênese do indivíduo com a sociogênese do Estado. Este é o nó do livro de 1939, que é retomado e desenvolvido em vários outros textos seus.
Hoje, fala-se, no jargão da sociologia, em "process sociology", "figurational sociology" ou "figurational and process sociology" para designar estudos e abordagens inspirados em Elias. Ele afirmou que os homens "só aparecem enquanto pluralidades, em figurações". A sociologia estuda figurações: o "todo", considerado enquanto processo, resultante das infinitas interdependências que se tecem sem parar entre os indivíduos e que os torna, precisamente, indivíduos.
As figurações são "modelos" que nos permitem pensar os processos sociais de longa duração enquanto "mudanças estruturais das figurações que vários homens interdependentes entre si formam". Desde o nível micro até o macro -desde as relações intrafamiliares até as relações entre as nações-, as relações de interdependência implicam em relações de poder, que cabe à sociologia investigar. Assim, ela luta por seu papel de "caçadora de mitos".

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