São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Vaca sagrada instiga radicalismo judaico

Libération
de Paris

CHRISTOPHE BOLTANSKI
EM JERUSALÉM

Melody é a novilha mais bem tratada de Israel. Ela tem seu estábulo próprio e não mantém contato com suas semelhantes. Não pode correr riscos, nem sofrer o menor machucado. Melody se contenta em posar diante das maiores autoridades rabínicas do país. As pessoas vêm de todas as partes admirar sua pelagem ruiva, inspecionada todos os dias e que, algum dia, pode pôr fogo na região.
A vaquinha nasceu há oito meses num kibutz religioso do norte de Israel. Fruto de uma inseminação artificial, passou num teste que nenhum órgão agrícola teria imaginado. Em março, um grupo de especialistas da Halacha, a lei judaica declarou Melody kosher (pura, segundo os preceitos judaicos). Ela se enquadra em todos os critérios da vaca ruiva, o animal sagrado descrito no "Livro dos Nomes".
Isso não acontecia havia 2.000 anos. As supostas antepassadas de Melody eram sacrificadas no altar do Templo. Apenas o sumo sacerdote era autorizado a abater o animal e queimá-lo numa fogueira de galhos de cedro e hissopo.
Ele misturava as cinzas com água de nascente e sorvia o caldo resultante para purificar-se dos contatos que poderia ter tido com os mortos. Sem essa operação, não podia entrar no Santo dos Santos, a sala em que eram conservadas as Tábuas da Lei.
A necessidade de uma nova vaca ruiva não havia vindo à tona desde a destruição, no ano 70 d.c., do Templo de Jerusalém pelo imperador Tito. Do edifício erguido no alto do monte Moriah hoje só resta o muro ocidental, mais conhecido como Muro das Lamentações.
Sobre o santuário antes dedicado a Jeová hoje se ergue o Domo da Rocha, o terceiro lugar santo do islamismo. Desse ponto o profeta Maomé teria subido aos céus, montado no cavalo alado, Buraq.
No decorrer dos séculos, os judeus, considerando-se em estado de impureza ritual, se negavam a penetrar no local.
Hoje, a proibição não impede alguns judeus radicais de querer orar na Esplanada, para grande desagrado dos muçulmanos. Há incidentes regulares em que tentam romper os cordões colocados pela polícia. Auto-intitulam-se "Fiéis do Monte do Templo" e prometem reerguer as ruínas sagradas no local que é hoje palco de conflitos entre árabes e israelenses. Seu chefe, Gershon Salomon, não teme provocar a ira divina porque, para ele, a "libertação do santuário" passa à frente de qualquer outro mandamento.
Salomon diz que os trabalhos de reconstrução vão começar em breve. "A hora se aproxima. Aguardem um milagre", diz ele. A novilha ruiva infundiu novo ânimo nos Fiéis do Monte do Templo. "Novos soldados vão se juntar a nós aos milhares, possivelmente aos milhões", prevê Salomon.
A vaca não poderá ser sacrificada antes dos três anos de idade. Segundo os especialistas, houve nove novilhas ruivas antes de Melody. A primeira foi preparada por Moisés, e a décima deverá ser imolada pelo Messias. Mais um ingrediente para exaltar os ânimos.
Mas talvez o fim dos tempos não esteja tão perto assim. Há alguns dias o rabino Mordechai Shmaryahu, responsável pelo bem-estar de Melody, declarou haver encontrado alguns pêlos brancos em sua cauda. Se a tendência se confirmar, Melody corre o risco de ser rejeitada, pois a vaca a ser sacrificada não pode ter mais de dois pêlos não-ruivos lado a lado. Para Salomon, "não faz mal. Se ela não for a vaca certa, haverá outras".

Tradução de Clara Allain

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