São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Disputa com a vida

GABRIELA MICHELOTTI; LAVÍNIA FÁVERO

POR GABRIELA MICHELOTTI E LAVÍNIA FÁVERO
Surpreendidas pela perda de seus maridos, mulheres aprendem a lidar com problemas financeiros e a cuidar dos filhos sozinhas
"Passei dois meses chorando e olhando o ar", Walkiria Teresa Frascino
"Eu não conseguia atravessar o corredor para chegar até a sala". Heloisa Vaz Gouvêa
A vitória de Guga em Roland Garros trouxe para o noticiário, a contragosto, um outro personagem: sua mãe, Alice Kuerten, 48, viúva há 12 anos, que criou sozinha três meninos, um deles excepcional.
A nova "heroína" brasileira -a quem o empresário Antonio Ermírio de Moraes dedicou um artigo na Folha ("Que belo exemplo, dona Alice")- é uma das 295.881 mulheres (IBGE) que, ainda jovens, tiveram suas vidas transformadas com as mortes prematuras dos maridos.
Há 11 dias, um grupo delas fundou uma associação que reúne as "viúvas da TAM" -mulheres que perderam os maridos na queda do vôo 402, que ia de São Paulo ao Rio, em outubro de 96.
No relato de suas histórias, vários pontos se repetem. Primeiro, vem o choque, difícil de descrever em palavras: "Foi como se a minha casa tivesse desabado" (Ivone Floridi, 61); "Parece que você está num liquidificador" (Maria Cristina da Cunha, 47); "As paredes da sala em que eu estava se fechavam sobre mim" (Vera Roncatti, 35).
A dor é tamanha que leva à incredulidade. Muitas viúvas dizem que tudo parece um pesadelo do qual vão acordar a qualquer momento. "O pior horário é o das 19h às 22h. Sempre acho que o Gilberto vai chegar", diz a tradutora Lucia Aquino, 32, dois filhos, que perdeu o marido no acidente da TAM.
"Você chora, mas não acredita. Eu sonhava que o André voltava e dizia que só estava brincando", conta a fonoaudióloga Margarete Lindeln, 28, que também perdeu o marido na queda do avião.
Depois, vem a depressão. "Passei dois meses chorando e olhando o ar", afirma a comerciante Walkiria Teresa Frascino, 43, viúva há 10 anos.
A bailarina Heloisa Vaz Guimarães Gouvêa, 40, "viúva da TAM", diz que "tem dias em que é difícil atravessar o corredor e chegar na sala". "Acordo e quero que o dia acabe; vou dormir e quero que a noite termine depressa. Perdi a ligação com o mundo."
São os sinais do luto: agitação, sonolência, falta de prazer, culpa, raiva, perda da concentração, do apetite, desamparo. "O luto é normal por até dois anos. Se, depois disso, a pessoa continua com os sintomas, entra em estado crônico", diz a psicóloga Adriana Carbone, responsável por um grupo de terapia para viúvas da PUC-SP.
A psicanalista Miriam Chnaiderman afirma que, para se recuperar, é "importante não lutar contra a dor". "As pessoas ficam muito aflitas quando estão tristes, mas, quando alguém que você ama morre, é preciso sentir essa tristeza. É essencial aceitar que há momentos na vida de recolhimento, que todo o luto é dolorido, mas necessário para que se possa elaborar essa perda", diz.
Para as jovens mães, o luto acaba sendo abreviado. Com filhos pequenos, solicitando atenção, elas começam a "tocar a rotina", sem ânimo. "Meu marido morreu em uma sexta e foi enterrado no sábado. Passei o domingo redigindo as respostas aos telegramas de pêsames e, na segunda, tive de cuidar dos negócios dele", diz Alice Kuerten.
A mãe de Guga acredita que o fato de não ter vivido o luto na hora fez com que os "sintomas" aparecessem três meses depois, mais fortes. Ela teve labirintite e síndrome do pânico.
Com tanto sofrimento, essas mulheres descobrem uma força que não sabiam que tinham. Aprendem a lidar com dinheiro, criam os filhos, enfrentam doenças e outras mortes sozinhas.
A produtora Luci Sidaui, 45, que perdeu o marido há 13 anos, vítima de insuficiência renal, nunca havia trabalhado. "Passei quatro anos cuidando do Pedro doente. Depois, tive de arrumar um trabalho, no qual estou há dez anos. Consegui manter o nosso padrão financeiro."
Casar-se de novo ou namorar é outro desafio. A maioria se fecha e não quer falar no assunto. "Eu fico brava quando as pessoas dizem que eu sou tão novinha, tão bonitinha, que conseguirei refazer logo a vida. Não consigo nem pensar nisso, não quero outra pessoa que não seja o André", diz Margarete.
Embora não sirva de consolo, os psicanalistas afirmam que, quanto mais feliz foi o casamento, maiores as chances de a mulher se recuperar. Diz Miriam Chnaiderman: "É muito difícil esquecer. A saudade fica. Quando o casamento era ruim, sobra muita mágoa, ressentimentos que não dão para resolver, porque o parceiro está morto. Mas, se a relação era boa, fica mais fácil lidar com a perda, porque a pessoa elabora o luto de uma maneira mais aberta à vida. Guarda algo bom daquele relacionamento que terminou dentro dela."
Apesar de se conhecerem há pouco tempo, da diferença de idade (de 28 a 41 anos) e da variedade de profissões (de bailarina a fisioterapeuta), 20 mulheres tornaram-se grandes amigas. São todas viúvas, que perderam os maridos na queda do vôo 402 da TAM, em 31 de outubro de 1996.
Reunidas em uma associação chamada informalmente de "viúvas da TAM", com nome oficial de Associação Brasileira dos Parentes e amigos de Vítimas de Acidentes aéreos, elas aproveitam os encontros para trocar experiências, falar de sofrimento -além, é claro, de discutir seus direitos. Elas reivindicam a divulgação imediata do laudo do acidente para que possam pleitear indenizações.
Os encontros acontecem cada vez na casa de uma. Elas tomam café, comem biscoitos, debatem estratégias -como angariar fundos; como reunir novos associados; como mobilizar a opinião pública. No final, conversam, ainda entre choros, sobre as mudanças em suas vidas.
Para a maioria, é difícil acreditar no que aconteceu. "O pior horário é o das 19h às 22h. Sempre acho que o Gilberto vai chegar a qualquer momento", diz a tradutora Lucia Aquino, 32, dois filhos.
"Você chora, mas não acredita. A todo momento, estou esperando ele aparecer. Eu sonhava que ele voltava e dizia que só estava brincando", afirma a fonoaudióloga Margarete Lindeln, 28, que estava casada havia um ano e meio.
Passado o choque, o trabalho ou os filhos são apontados como a razão para estarem ali, vivendo. "No começo, tinha a sensação de que tudo era inútil e passava os dias pensando que iria morrer. Não tenho filhos e, por isso, o meu estímulo para levantar da cama foi o trabalho", diz Margarete.
A bailarina Heloisa Vaz Guimarães Gouvêa, 40, hoje vice-presidente da associação, afirma que tirou forças da necessidade de continuar criando os filhos -Roberta, 15, Fernando, 13, e Camila, 8. "Eu não queria mais sair do quarto. Não conseguia atravessar o corredor para chegar à sala", conta.
A educação das crianças e a situação financeira são as principais preocupações desse grupo de mulheres. Heloisa diz ter aprendido que não adianta tentar "ser pai e mãe ao mesmo tempo".
"Não dá para substituir. Um dia, fui assistir a uma competição de pólo aquático do meu filho. Só tinha eu de mulher, os outros eram pais. Percebi que não adianta querer ser pai também, mas é preciso ser mãe em dobro. Agora eu só vou a eventos com meu filho se ele me chamar."
Lucia conta que seu filho Felipe, 5, ficou muito traumatizado. "Ele não podia escutar barulho de telefone que ficava agressivo. Se eu precisava sair, ele perguntava se eu também não ia mais voltar", diz.
O filho mais novo da dona-de-casa Eliana Antonia Cremasco, 38, é o que mais sente a falta do pai. "O Evandro, que tem cinco anos, só jantava quando o meu marido chegava, porque ele dava a comida na boca dele. Depois do acidente, ele parou de comer. Agora, come de vez em quando, mas não aceita que eu dê a comida na boca. Outro dia, ele disse que tinha saudades do colo do pai."
Eliana fez apenas até a oitava série, nunca trabalhou e a única renda da casa era o salário do marido, gerente de produção de um laboratório farmacêutico. Os filhos mais velhos -de 19 e 16 anos- começaram agora a trabalhar para custear os estudos. "Preciso trabalhar, mas ainda não estou com cabeça. Desisti até do meu curso de pintura."
Apesar de trabalhar fora, a fisioterapeuta Vera Roncati, 35, está aprendendo nos últimos meses a lidar com dinheiro. "Eu não gastava mais de R$ 500 sem consultar o meu marido. Agora, mudei de casa e vendi o carro sozinha. Está sendo muito difícil", diz Vera, mãe de uma menina de sete anos.
Nenhuma delas está namorando. E, por enquanto, nem pensam nisso. "Eu não gosto nem de ouvir as pessoas me dizendo que eu sou nova e bonitinha e que vou me casar de novo. Não tenho a menor vontade", afirma Margarete.

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