São Paulo, domingo, 22 de junho de 1997
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Disputa com a vida

"Foi um choque tremendo. Parece que você está num liquidificador."
Maria Cristina da Cunha
"Eu tinha 23 anos e estava grávida de três meses quando o meu marido morreu em um acidente de carro. Não foi morte instantânea. Ele foi operado várias vezes e morreu 12 horas depois. Eu tinha muita esperança, uma certeza de que ele iria resistir. Achava que poderia acontecer tudo, menos aquilo. Ou acontecer a qualquer momento, menos naquele.
Eu estava casada havia três anos e meio. Não quisemos ter filhos antes, porque eu estava estudando. Quando nos decidimos, aconteceu...
Passei seis meses deitada para evitar um aborto. Em 20 dias, perdi 10 kg. Com três meses de gravidez, eu pesava 49 kg e, aos oito meses, continuava com os mesmos 49 kg. Rodrigo nasceu antes do tempo, em uma cesariana, saudável, apesar de muito magrinho -só 2,5 kg.
O parto foi muito difícil. Até hoje, quando penso, me dá medo: eu entrando só com a minha família na sala de parto. Por muitos anos, tive pavor de engravidar e passar por tudo aquilo de novo.
À medida que o Rodrigo foi crescendo, começou a perguntar pelo pai. Fui mostrando fotos, dizia que ele estava no céu. Acho que até hoje ele sente um vazio pela falta do pai. Ficou uma coisa que nem ele sabe bem o que é.
Até o Rodrigo completar três anos, eu não trabalhava, nem estudava, porque me sentia desestimulada. Quando ele foi para a escola, comecei a dar aulas, fiz terapia e fui me recuperando.
Com 10 anos, Rodrigo ficou muito doente. Ele estava tomando banho e apareceu um carocinho. Corri ao pediatra e descobrimos que ele tinha um tumor maligno. Eu estava começando a me levantar, voltando à minha vida normal e veio a doença...
Rodrigo fez dois anos de quimioterapia. Eu pedia aos médicos garantias de que ele ficaria bom, mas eles não me davam. Tinha vontade de desistir, vendo meu filho sofrer.
Mas, deu sorte, e o Rodrigo ficou bom. Nunca mais teve nada. Hoje, ele faz muito esporte e estuda direito.
Quando eu estava com 38 anos, decidi fazer outro vestibular. Entrei em direito, área em que atuo hoje. No primeiro dia da faculdade, queria sair correndo, porque só havia jovens. Depois de uma semana, acostumei.
A faculdade me ajudou, fez com que eu retomasse aquilo que eu já tinha tentado retomar uma vez. Conheci pessoas, mas sempre com muito medo, pisando em ovos. Meu primeiro namoro após a morte do meu marido foi aos 26 anos. Foi difícil achar alguém que entendesse a minha situação: eu tinha 26 anos, mas não era mais uma menina, tinha uma carga gerada pela viuvez, tinha um filho. Sentia muito medo de rejeição. Muitas vezes, demorava para contar aos homens sobre a minha situação, adiava.
Nunca me casei de novo. Tive algumas experiências, gostei muito de uma pessoa, mas de uma maneira diferente da que amei o meu marido. Até porque eu era muito jovem... Eu o conhecia desde os 11 anos e começamos a namorar quando eu tinha 17.
Eu acho que o meu filho me deu um norte. Ficaria mais perdida sem ele. Não tinha tempo para ficar chorando, uma criança pequena solicita o tempo todo.
O vazio que a morte traz é uma coisa que fica -definitivamente. Diante da morte, você é impotente. É diferente de uma separação, que traz ansiedade, porque você acredita que ainda pode fazer alguma coisa. A morte traz só tristeza.
Acho que transmiti essa tristeza profunda para o Rodrigo e não sei até que ponto a doença dele não foi emocional. O tumor que ele teve é raro em crianças, um médico dos EUA queria até estudar o seu caso.
Eu nunca entendi a morte do meu marido. Sei que tudo poderia ter sido diferente. Eu e o Rodrigo seríamos outras pessoas hoje."

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