São Paulo, segunda-feira, 23 de junho de 1997
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Capital não se assusta com o Cade, afirma conselheira

DENISE CHRISPIM MARIN
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

As cervejarias norte-americanas Miller e Anheuser-Bush não devem virar as costas ao mercado brasileiro, mesmo depois das sentenças desfavoráveis que ouviram na semana passada no Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
Essa é a convicção da conselheira Lucia Helena Salgado e Silva, a mesma que defendeu a extinção das associações entre a Anheuser-Bush e a Antarctica e entre a Miller e a Brahma dentro de dois anos.
"Não acredito na possibilidade de a Miller e a Anheuser-Bush virarem as costas ao mercado brasileiro."
A decisão custou à conselheira a acusação de xenofobia (aversão a pessoa ou coisa estrangeira). O autor foi o próprio presidente do Cade, Gesner Oliveira.
"É pura paranóia pensar que essas duas decisões possam paralisar a onda de investimentos estrangeiros para o Brasil", rebateu.
A polêmica começou há duas semanas, quando o Cade encolheu em 11 anos o prazo de vigência da associação entre a Brahma e a Miller, a terceira maior cervejaria do mundo.
A associação previa que, em vez de instalar fábrica própria no Brasil, a Miller se valeria das plantas industriais e da rede de distribuição da Brahma.
Propósito semelhante estava no contrato de 20 anos da Anheuser-Bush com a Antarctica, sobre o qual o Cade ensaiou uma limitação na semana passada.
O julgamento foi interrompido e adiado por 15 dias por força da interferência do presidente do Cade, que se preocupou com a má repercussão que a decisão teria em investidores estrangeiros.
"Se houvesse cultura de concorrência no Brasil, não haveria essa celeuma toda. A empresa rearranjaria a operação e a reapresentaria à autoridade antitruste", disse Lucia Helena, em entrevista à Folha.
Consultora durante a elaboração da atual lei antitruste, a economista Lucia Helena já provocou surpresa anteriormente ao determinar a suspensão da marca Kolynos por quatro anos.
*
Folha - No julgamento da associação entre a Antarctica e a Anheuser-Bush, o presidente do Cade apontou sinais de xenofobia. Como a senhora avalia a acusação?
Lucia Helena - A acusação não tem embasamento. Dizer que nossos votos foram xenófobos é não atentar para o rigor da análise que fizemos. O caso das cervejas é complexo. À primeira vista, não se percebe problema concorrencial.
Analisamos cerca de 32 atos de concentração no último ano. A maior parte de aquisição de empresas brasileiras por estrangeiras. Aprovamos rigorosamente todos. O Cade não revelou nenhum tipo de censura ou de preconceito com o capital internacional.
Folha - Qual seria o dano à concorrência de associações como as feitas pela Antarctica e pela Brahma?
Lucia Helena - Quando uma empresa ameaça construir uma fábrica em um país, ela provoca reação positiva nas concorrentes locais, que vão procurar maior eficiência para competir.
No caso da associação entre a Antarctica e a Anheuser-Bush esse efeito positivo é eliminado. Também desaparece o benefício que ocorre quando a empresa entra efetivamente no mercado.
Folha - Ou seja, a manutenção de uma associação como essa provocaria dano duplo à concorrência.
Lucia Helena - Sim. Levei em consideração a eliminação das duas formas de concorrência potencial. Já havia alertado para esse problema em votos anteriores.
O Brasil passa pela terceira onda de internacionalização da economia. Não é exagero dizer que é a mais promissora das economias ocidentais. É natural que as empresas queiram entrar no Brasil porque as economias de seus países de origem estão estagnadas.
Folha - Como a senhora prova que a Anheuser-Bush poderia entrar no Brasil por si mesma?
Lucia Helena - Fiz quatro cenários, com base no porte econômico da Anheuser-Bush, na sua necessidade de buscar novos mercados e no grande potencial do mercado brasileiro. Demonstrei que é viável sua entrada independente.
Também mostrei que o período de dois anos para a dissolução da joint venture prorroga uma aliança que já dura um ano e meio. Também é suficiente para a Anheuser-Bush superar as barreiras para sua entrada.
A gente só limitou a associação no tempo. E isso está de acordo com a mais moderna jurisprudência internacional. Não existe acordo por tempo indeterminado.
Folha - Por que a senhora não propôs a dissolução imediata da associação?
Lucia Helena - Porque realmente existem barreiras no mercado de cervejas, como as dificuldades para a criação de redes de distribuição e a fixação de marcas. Não foi questão de ser branda.
Ao aplicar a lei, temos que fazer com que o custo privado seja mínimo. Calculei o tempo para que os objetivos de superação das barreiras sejam atingidos.
Folha - Se a Miller e a Anheuser-Bush montassem fábricas no Brasil, a Brahma e a Antarctica não perderiam parte dos 90% de mercado que têm hoje?
Lucia Helena - Não tenho dúvidas. Não acredito na possibilidade de a Miller e a Anheuser-Bush virarem as costas ao mercado brasileiro por causa da decisão do Cade. Na China, a Anheuser-Bush entrou para construir uma fábrica. A gente quer que ela entre para produzir de verdade no Brasil.
Se a maior cervejaria do mundo entrar no Brasil sem nenhum aporte, outras empresas realmente interessadas em nosso mercado poderão se sentir inibidas.
Elas teriam que entrar em um mercado concentrado, transpor barreiras excessivas e enfrentar a força da Anheuser-Bush, que estará associada a uma das firmas brasileiras dominantes.
Folha - Esses dois últimos julgamentos criam precedentes que impõem obstáculos à entrada de investimentos no país?
Lucia Helena - Cada caso é um caso. O importante é que os conselheiros do Cade mantenham coerência. É pura paranóia pensar que essas duas decisões possam paralisar a onda de investimentos estrangeiros para o Brasil. O capital não se move emocionalmente. Ele se move pelos seus interesses.
Na verdade, as duas associações não são os melhores exemplos de investimentos para o país.
Folha - Por quê?
Lucia Helena - Não está prevista a expansão da capacidade produtiva. A Anheuser-Bush vai produzir a cerveja Budweiser nas instalações da Antarctica.
A Anheuser promete ensinar à Antarctica como organizar melhor seus negócios. Mas isso já foi transferido para a Antarctica, segundo a empresa, ou pode ocorrer nos próximos dois anos.

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