São Paulo, segunda-feira, 23 de junho de 1997
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O porão da América

PATRICIA DECIA
DA REPORTAGEM LOCAL

Bob Dylan é um mito. É o cantor de folk que, na década de 60, ousou unir instrumentos elétricos a canções cheias de engajamento. Transformou-se numa figura mais conhecida que sua própria obra e foi cogitado para o Prêmio Nobel de Literatura em 96 por suas letras.
Um outro lado de Dylan acaba de emergir das páginas de "Invisible Republic - Bob Dylan's Basement Tapes" (República Invisível - As Fitas do Porão de Bob Dylan), do crítico norte-americano Greil Marcus, um dos principais analistas da cultura pop dos EUA.
"Dylan é encarado como uma relíquia dos anos 60, mas está conectado a uma tradição muito mais profunda e antiga, que dá mais longevidade à sua obra. Se fossem apenas os anos 60, ele seria esquecido quando seus contemporâneos começassem a morrer, pois não haveria mais ninguém para fazer de sua vida e memória um fetiche. Não acredito que isso acontecerá", disse Marcus à Folha, por telefone, de sua casa na Califórnia.
Marcus parte das centenas de gravações realizadas por Dylan com os membros da The Band, em 1967, no porão de um casarão em Woodstock apelidado de "Big Pink". O cantor estava num exílio involuntário após sofrer acidente de moto.
Essas canções só foram lançadas oficialmente num álbum duplo em 1975 e mais tarde numa caixa com cinco CDs, mas circulavam na época como fitas cassete piratas que ficaram conhecidas como "The Basement Tapes".
Trinta anos depois, elas servem ao crítico que tenta traçar um retrato da história dos EUA. Mas que não se espere o relato dos anos da contracultura. O autor procura as raízes de um país cuja tradição, segundo ele, ecoa na obra de Dylan. A seguir, trechos da entrevista.
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Folha - Porque escrever sobre Dylan agora?
Greil Marcus - Bob Dylan lançou no início dos anos 90 dois discos extraordinários de música tradicional, canções folk e blues muito antigos. A atmosfera desses dois álbuns -"Good as I Been to You" e "World Gone Wrong"- me lembrou dos "Basement Tapes". Eles soavam terrivelmente antigos, como o próprio país, até mais velhos. Ali está o homem aos 50 que soa quase da mesma maneira de quando tinha 20. Essa música, acima de tudo, traz a sensação de que Dylan sempre se identificou com a música tradicional dos EUA e seu mistério. Então, como um escritor arrogante, quis tentar resolver esse mistério.
Folha - O Dylan dos "Basement Tapes" exibe que características dessa música tradicional?
Marcus - Um sentido de pecado e prazer, as duas coisas colidindo constantemente, a alegria absoluta de estar vivo e o terror da morte. Esses tipos de extremos definem a antiga América e os "Basement Tapes".
Folha - Por outro lado, como está demonstrado no livro, a música folk prega acima de tudo a pureza.
Marcus - Essa é a crença que eu acho que Dylan sempre tentou atacar, subverter. De certa forma, ela faz parte da tradição romântica e utópica do país. É uma maneira de dizer: este país pode ser puro, perfeito. Mas, nos EUA, as pessoas dizem "nós somos perfeitos, eles não, nós somos os verdadeiros americanos, eles, não". Isso aconteceu nos anos 50, com o macarthismo, e também no folk, mas de uma perspectiva política oposta. Parece, para mim, que não apenas Bob Dylan nunca se enquadrou nessa dinâmica, mas, num certo ponto (onde meu livro começa), ele simplesmente dá as costas a isso. Ele entra em algo muito mais perigoso. O revival do folk é apenas mais um exemplo do desejo da América de ser perfeita, de se purificar. E isso é, ao mesmo tempo, a fonte da grande força do país e de seus piores crimes.
Folha - O sr. diz que Dylan foi o ponto de virada da cultura norte-americana por um período.
Marcus - Nos anos 60 ele parecia uma figura tão poderosa, glamourosa e misteriosa nos EUA que, na cultura pop, todas os caminhos levavam a Bob Dylan. Ou as pessoas queriam sua aprovação ou ele tinha que se envolver nos eventos culturais para justificá-los. E isso é verdade quando se fala de Andy Warhol, dos Beatles, de um filme como "Bonnie e Clyde - Uma Rajada de Balas".
Dylan era uma figura magnética e parecia encarnar todo o espírito da época, onde os significados políticos e culturais estavam constantemente mudando, sempre parecia estar um passo à frente. As pessoas olhavam para ele para dizer o que realmente estava acontecendo.
Desde esse período, Dylan tornou-se alguém com uma carreira dúbia, um sinal de glória e esperança, mas certamente nunca mais foi essa figura magnética, quase super-humana.
Folha - O que acha de Dylan ter sido cogitado para o Nobel?
Marcus - Achei uma idéia estúpida. Ele é um performer no palco ou no estúdio, antes de qualquer coisa, não é primordialmente um escritor. Se Dylan não fosse um grande cantor, um grande músico, nada disso importaria, ninguém estaria falando sobre ele.
Eu vi algumas das cartas de apoio a essa menção para o Nobel e todas se concentravam em como suas letras passavam como poesia.
Se você quer ler poesia, leia um poeta. Se você quer ouvir música que irá chocar e deixá-lo arrepiado, pode ouvir Bob Dylan.

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