São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 1997
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Histórias de fantasmas

PAUL THEROUX

"Há apenas um direito na China-o de ser alimentado; é o tipo de coisa de que desfruta qualquer cão e gato"
O escorregão de Thatcher
Em setembro de 1982, Deng recebeu a visita de um terceiro emissário britânico -a primeira-ministra Margaret Thatcher. Ela chegou três meses depois de derrotar os argentinos na Guerra das Malvinas.
Em todo o "abrasivo" interlúdio de Thatcher com Deng, o líder chinês fumou sem parar e cuspiu numa escarradeira a seus pés, um antigo hábito. Thatcher levantou a questão de Hong Kong continuar sendo administrada pelos britânicos após 1997. Cuspindo intermitentemente, Deng fez uma preleção sobre a soberania chinesa e repetiu que o assunto não era negociável. E marcou a data da transferência: 1º de julho de 1997. Jamais vacilou. Considerava a recuperação de Hong Kong sua missão pessoal, e ela permanece uma de suas principais vitórias.
Thatcher saiu frustrada do Grande Salão, perdeu o equilíbrio na escada e despencou de quatro, com a bolsa voando, as pérolas balançando, e -com o traseiro para cima e rubra de vergonha- parecia estar fazendo uma reverência para Mao, no mausoléu ali perto. As negociações, até então frias, tornaram-se glaciais.
Thatcher pediu "garantias", mas suas reivindicações foram praticamente uma afetação. Em nenhum momento alguém perguntou à população de Hong Kong o que pensava sobre seu futuro.
Depois de 22 rodadas de negociações, a Declaração Conjunta foi assinada pela sra. Thatcher em dezembro de 1984, quando ela concordou em entregar os milhões de habitantes de Hong Kong a um dos governos mais repressivos do mundo, com um longo passado de atrocidades políticas e convulsões sociais.
Para eliminar a incerteza sobre as provisões legais numa Hong Kong governada pela China, seria redigida uma Lei Fundamental, inspirada em cláusulas da Declaração Conjunta. Muitos viram com esperança a elaboração desse documento, acreditando que seria um esboço da primeira Constituição de Hong Kong, mas surgiram profundas diferenças entre os diversos autores do documento: alguns queriam eleições democráticas, outros preferiam eleições limitadas e uma facção pró-China argumentava que não havia necessidade de eleições.
O parecer de Deng foi assustador: em abril de 1987 ele advertiu que a democracia não era uma boa idéia. "As pessoas que governarão Hong Kong deverão amar a terra-mãe e amar Hong Kong. Pode o sufrágio universal realmente produzir pessoas assim?"
O romance do geomante
Quando pedi a algumas pessoas que especulassem sobre o sucessor de Deng, disseram-me que apenas os idiotas especulavam sobre as disputas da liderança chinesas. A única certeza era que o líder acabaria surgindo de algum lugar.
Quanto a isso, Tung Chee-hwa, o sucessor de Patten, é outro exemplo tipicamente chinês de que alguém pode desabrochar na sombra. Tung, 60, nasceu em Xangai, estudou na Inglaterra, trabalhou nos EUA e em 1969 entrou para a firma de exportações da família.
Em 1985, porém, a empresa de Tung enfrentou problemas, com dívidas que somavam US$ 2,5 bilhões; beirando a falência, ele obteve um empréstimo de US$ 120 milhões, na maior parte de empresas da República Popular da China. A empresa de Tung tornou-se novamente viável. Hoje ele está bilionário, mas profundamente endividado com a República Popular. Com certeza, jamais a criticou e desde 11 de dezembro de 1996, quando foi nomeado "principal executivo" da Região Administrativa Especial de Hong Kong, tornou-se cada vez mais impaciente, e até agressivo, com os jornalistas e os defensores da democracia.
No dia seguinte à sua nomeação, ele manifestou apoio às políticas linha-dura chinesas. Um mês depois, disse aprovar a revogação das leis que protegem vários direitos, salientando que a "ordem social" deve ter precedência sobre os "direitos individuais". Tung foi, obviamente, uma escolha pessoal de Deng.
O modelo de Tung é o notório Lee Kuan Yew, de Cingapura. Muitos acreditam que a Cingapura de Lee -ordeira, repressiva, uma "Disneylândia com pena de morte", nas palavras do escritor William Gibson -é o que Tung gostaria que Hong Kong fosse.
Tung acredita no "feng-shui". Ele não mexe uma palha sem consultar seu geomante. Até a disposição das cadeiras no Conselho é determinada por meio de consulta às forças cósmicas e à influência dos Cinco Elementos.
Tung acredita que o Palácio do Governo de Hong Kong tem "feng-shui" negativo, e não vai residir lá. O fato de ter abrigado governadores "gweilo" durante 142 anos também pode ter contribuído para seu aspecto maléfico.
Um geomante disse que o problema era ser "cercado por edifícios altos, que bloqueiam seu espírito". "Veja a lateral do Banco da China -é afiada como um machado, e parece que o está cortando", disse-me um adepto do "feng-shui".
Quem governará Hong Kong?
Não Richard Hoare. Aos 47 anos, e parecendo mais jovem, Hoare é um funcionário público britânico que estará se aposentando cedo, no dia da devolução.
"Minha decisão de partir é puramente pessoal", disse-me o sr. Hoare em seu escritório pequeno e austero na Secretaria de Governo.
Perguntei-lhe de seus temores sobre o futuro de Hong Kong. "Tudo o que está escrito nos textos sagrados está certo", ele disse, referindo-se à Declaração Conjunta e à Lei Fundamental.
Havia algo comovente em sua partida, porque, inteligente e no vigor da idade, ia se exilar numa aldeia no interior da Inglaterra. Um gesto tradicionalmente inglês.
"Sinto que a era colonial terminou", disse. "Estou no lugar errado e na hora errada."
David Chu Yu-Lin está no lugar certo e na hora certa. Depois de ser escolhido pela República Popular como um dos membros inaugurais da nova Assembléia Legislativa de Hong Kong (criada pela China para promulgar leis a partir de 1º de julho), Chu é possivelmente um dos futuros líderes da região.
Eu conhecia muita gente em Hong Kong que amaldiçoava os ingleses e aplaudia a volta dos chineses, mas poucos abanavam o rabo com tanta ênfase quanto Chu.
Perguntei-lhe se estava inquieto com a transferência. "A transferência de Hong Kong é o começo da nova China!", ele disse. "É o renascimento da civilização chinesa!"
E quanto à cláusula de subversão e a liberdade de imprensa? "Nossa liberdade é apropriada à nossa cultura e nosso atual estágio de desenvolvimento."
Certamente, eu disse, os habitantes de Hong Kong vieram para cá fugindo dos chineses. "Sim, mas as coisas mudaram, e na realidade a China não é mais comunista. É um socialismo modificado."
Eu havia sido advertido por um ativista pró-democracia de que não devia levar a sério o sr. Chu. Mas na realidade ele parecia ser exatamente o tipo de pessoa de que os chineses precisavam em Hong Kong para fazer tudo à sua maneira.
O líder inconteste do movimento pró-democracia é Martin Lee. Dizem que é decidido e incorruptível, corajoso e (qualidade rara num chinês) abertamente confrontador. Também se empenha para que a justiça para o povo de Hong Kong seja garantida na lei chinesa e protegida nos tribunais chineses.
Desde a praça Tiananmen e o fortalecimento da oposição em Hong Kong, Lee provavelmente se tornou seu cidadão mais famoso. O nome dele surgiu em quase todas as conversas que tive.
Lee tem um olhar intenso e solene, mas suas maneiras mudam completamente quando ri, o que é frequente. Embora o caminho que escolheu possa levar ao martírio, quando lhe perguntei sobre essa perspectiva, ele respondeu: "Não acho provável que eu seja atirado na prisão, porque sou famoso. Mas, e as pessoas que não são? Aí é que está a possibilidade".
Lee havia estado recentemente em Washington e acabava de voltar de uma triunfante excursão de palestras pelas capitais européias. Na Europa, continuou a escrever e publicar artigos. Num deles resumiu a situação de Hong Kong, dizendo sobre a Declaração Conjunta: "Ela promete que o povo de Hong Kong terá seu próprio Legislativo, um Executivo que respeite esse Legislativo, um Judiciário independente e um 'alto grau de autonomia'. Pouco mais de uma década depois, o acordo está em farrapos".
Lee explicou-me que a Lei Fundamental deveria ser o código jurídico essencial numa Província que jamais tivera leis próprias, mas que a China conseguira tornar vagas suas disposições básicas. Com a aproximação de 1º de julho, não há indícios de que pretenda manter o acordo. Alguém espera que a China estabeleça uma Corte de Apelação Final depois de 1º de julho? Todos sabem que a China sabe que a justiça pode ser muito ágil -e que uma bala no pescoço é frequentemente a punição pelos erros.
A Anistia Internacional registra que milhares de pessoas têm esse destino na China todos os anos. As execuções, às vezes cinco ou dez ao mesmo tempo, ocorrem muitas vezes em estádios esportivos. Os mais pessimistas em Hong Kong perguntam-se se o hipódromo de Happy Valley, com seus telões, servirá a esse propósito no futuro, ou talvez, como sugeriu Lee, os cidadãos de Hong Kong sejam enviados a Pequim para enfrentar tribunais-fantoches. Afinal, uma das justificativas de Deng para as execuções era "matar uma galinha para assustar os macacos".
Lee é sombrio a esse respeito. "Quando se vêem violações patentes da Lei Fundamental e da Declaração Conjunta, como se pode garantir que as outras cláusulas não serão violadas?", disse.
A China, ressaltou Lee, não tem uma história de preocupação pelos direitos e liberdades dos indivíduos. "Existe apenas um direito na China -o de ser alimentado. É o tipo de coisa de que desfruta qualquer cachorro e gato".
Desde que cheguei a Hong Kong ouvi elogios e ofensas a Lee -principalmente elogios-, mas na sociedade chinesa tradicional não é admirável assumir riscos. Para alguns, Lee era um estorvo -na verdade, um "mero contratempo"-, mas também o tipo de pessoa a que muitos acorreriam se não estivessem tão aterrorizados pelo próximo comissário de Cultura. No final, Martin Lee será aclamado como herói, mesmo que sejam necessários os 27 anos de que precisou Nelson Mandela para atingir seu objetivo; e nesses 27 anos mal se escutou uma palavra sobre Mandela dos empresários e políticos que hoje lhe beijam a bunda.
Sempre haverá Xangai
"Tenho fé no melhor", disse-me Lee quando nos despedimos. Ele foi a pessoa mais marcante que conheci em Hong Kong, e a única que pretendo ouvir quando algo importante acontecer.
Nada mudará durante 50 anos; foi essa a promessa da China.
Mas hoje, à véspera da devolução, muita coisa mudou. Há a nova bandeira e os novos latões de lixo: os antigos, com emblemas coloniais, foram substituídos por recipientes cor de ameixa. A palavra "real", que aparecia em tantos nomes de clubes, foi apagada; já desapareceu até das fachadas das delegacias de polícia. Os requisitos de residência estão mudando, assim como o regulamento sobre licenças de trabalho.
E apesar de a China ter dito que haveria apenas 2.000 soldados do Exército de Libertação do Povo estacionados em Hong Kong, já chegaram 4.000.
Um dia eu estava com um amigo "gweilo" no Hong Kong Club. Era um empresário bem-sucedido que morava em Hong Kong havia mais de 30 anos. Eu conhecia vários "gweilos", os moradores estrangeiros -todos irônicos, engraçados, mas quando surgia o tema política tornavam-se implacavelmente silenciosos, moralmente cegos, governados pela pressão da semana de trabalho de sete dias. Era assim que se enriquecia rapidamente; era como se obtinha sucesso nas joint ventures com a China. O servilismo era o caminho para a prosperidade.
A indiferença estrangeira à repressão impulsionara a economia chinesa e tornara Hong Kong fabulosamente rica. Até então, diziam esse moradores, não havia conexão entre liberdade política e lucro. "Veja a China!"
"O que acha que acontecerá?", perguntei ao empresário. "Provavelmente não teremos problemas", ele disse. "Não é preciso se preocupar."
"E se jogarem merda no ventilador?"
"Se Hong Kong cair, sempre há Xangai. Os 'gweilos' irão para lá. Xangai está indo bem."
Ri diante desse paradigma do pensamento lateral de Hong Kong.
"Mas você é americano", eu disse.
"Não sou mais. Renunciei à minha cidadania."
Ele me revelou sua nova nacionalidade e viu meus olhos se arregalarem quando citou um pequeno país equatorial, quase completamente analfabeto.
"Então não fica apreensivo com a devolução?"
Ele franziu os lábios e, bebericando, pareceu beijar a borda da taça de xerez.
"É um não-acontecimento", disse.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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