São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 1997
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Filme celebra o precário

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Se "Jules e Jim" ainda vive -e vive-, já existe prova de que cinema não é técnica, não é organização, não é profissionalismo.
Se fosse analisado por esses critérios, tão contemporâneos, o filme não resistiria um dia. A câmera com frequência põe-se a tremer, às vezes parece perder seu objetivo. Por vezes, Truffaut fixa uma imagem, quase arbitrariamente, suspendendo momentaneamente a ação para fazer um comentário.
Pode-se dizer, ainda, que o desfecho do triângulo amoroso entre os amigos que amam a mesma mulher é um tanto abrupto, desprovido de uma dramaticidade que, no entanto, se anuncia.
E daí? "Jules e Jim" resiste a tudo pela simples força do que tem a dizer e pela paixão de dizer.
O que François Truffaut tem a mostrar não são movimentos de câmera, nem os sinais de um orçamento, mas a dor de viver, de amar, de existir na confluência entre a convenção estabelecida (o casal) e o desejo, de experimentar a imperfeição e a fragilidade do humano e de seus afetos.
Mais do que tudo, Truffaut o mostra com um prazer inexcedível, de tal modo que é quase impossível ao espectador não partilhar as paixões, as dúvidas, enfim os delicados movimentos de coração dos três protagonistas. Vem daí a força de "Jules e Jim", que ainda permanece até hoje.
A isso, o filme agregou outras virtudes, dessas que o tempo por vezes vem depositar nas imagens.
A principal delas vem do encontro de duas datas. A ação se passa no início do século, próxima à Primeira Guerra, e um "subplot" nada desimportante do filme consiste no fato de, em determinado momento, Jules e Jim, os inseparáveis amigos, se encontrarem na trincheira, em lados opostos.
A segunda data é a da realização do filme, início dos anos 60, momento de apogeu da Guerra Fria, e também ponto de inflexão da história francesa contemporânea, quando De Gaulle trata de pôr fim ao conflito colonial na Argélia.
A observação de Truffaut, nesse sentido, é tão simples quanto enérgica: os homens existem além dos conflitos nacionais que os separam. Existe uma glorificação da existência, mesmo em sua precariedade (ou justamente nela), pelo menos comovente, e que está tanto no rosto dos dois homens como na expressividade transbordante de Jeanne Moreau.
Para terminar, o filme de Truffaut encerra uma delicada história de amor entre o cineasta e o escritor Henri-Pierre Roché, autor do romance que Truffaut tirou do possível esquecimento e concebeu como seu primeiro longa (o que acabou não acontecendo pelas dificuldades da produção).
A reapresentação de "Jules e Jim" religa o espectador a um momento em que o cinema não deixava de ser um produto, mas em que essa era uma preocupação subsidiária, que vinha após a necessidade imperiosa de dizer algo.
Não há por que (nem como) chorar sobre o leite derramado. Mas "Jules e Jim" é uma lição a reter, num momento em que o cinema se anuncia tecnológico, mas é, o mais das vezes, tecnocrático.

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