São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 1997
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Magna China

OTAVIO FRIAS FILHO

Hong Kong está para ser devolvida à soberania chinesa sob a fórmula "um país, dois sistemas", cunhada por Deng Xiaoping. Existe uma tendência a interpretar essa dualidade de sistemas como referência a uma suposta coabitação entre capitalismo e socialismo. Para tanto, seria necessário que a China fosse um país socialista.
Pode haver controvérsia sobre se alguma vez ela foi; nenhuma de que não é mais. No dia seguinte à morte de Mao, em 76, a ditadura chinesa começou a restabelecer maciçamente os mecanismos da competição, do lucro e da propriedade privada -o capitalismo, enfim, embora sob controle direto do Estado.
É uma ironia, póstuma e perversa, que está implícita na fórmula de Deng. "Um país", ou seja, o império chinês restaurado na sua extensão original, desde a Mongólia até o sudeste asiático. "Dois sistemas", ou seja, uma ditadura que se expressa em gíria comunista sobreposta ao todos-contra-todos do capitalismo.
A experiência do Ocidente moderno levou à convicção de que o capitalismo gera uma pressão democrática, em última análise irreversível, sobre as instituições. O aumento da riqueza amplia e diversifica as formas de consciência, enquanto os conflitos na esfera econômica se acirram até irromper abertamente na arena política.
O massacre de Tiananmem, a praça monumental de Pequim, em 89, endossou essa hipótese. Não fosse a reação sanguinária do governo, é provável que o levante, confusamente democrático, fruto de um capitalismo nascente, tivesse dissolvido o regime em meses ou semanas. Desde então se espera pelo próximo duelo entre ditadura e democracia.
Tendo mutilado a China, no século passado, de maneira só comparável ao que os americanos faziam na mesma época com o México, os ingleses se retiram para um merecido repouso, deixando uma bomba-relógio em Hong Kong: a democracia recentemente instalada. Mas quem vai obrigar o governo de Pequim a tolerá-la?
A vitória na Guerra Fria acarretou esses temível efeito colateral para os Estados Unidos: desaparecido o contrapeso soviético, a Ásia, continente do século 21, cai na órbita da China, que de potência secundária se torna potência rival. A devolução de Hong Kong é uma das últimas consequências da queda do Muro.
No cinturão de países marítimos, ao sul, o enorme dinamismo econômico foi impulsionado por uma burguesia selvagem, de origem chinesa. São como os cubanos da Flórida. Exilados pelo comunismo, são eles que alavancam a restauração capitalista em sua terra natal, de olho no sonho, finalmente palpável, da Magna China.
Cingapura foi o laboratório desse monstro que combina totalitarismo asiático com economia liberal. O hiato entre progresso capitalista e atraso democrático está se dilatando na China, talvez porque o proverbial crescimento a taxas perto de 10% leve a uma sensação de ganho generalizado. A dúvida é se Hong Kong será um catalisador -e do quê.

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