São Paulo, sexta-feira, 27 de junho de 1997
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Mercado de gente

JANIO DE FREITAS

No intuito de sempre servir ao governo, como é da praxe no jornalismo de política e de economia, apresso-me a atender o pedido feito pelo senador José Serra sem destinatário definido: "A demissão de Mauro Costa precisa ficar bem explicada, porque ele vinha cumprindo rigorosamente as recomendações do governo federal".
A atenção dada ao pedido não é só um gesto a mais de simpatia pelo nível de decência dos atuais governantes e seus apoiadores políticos. O caso é interessante mesmo, em se tratando da destituição de um servidor que, diz um dos mais próximos de Fernando Henrique Cardoso, "cumpria rigorosamente as recomendações". Superintendente da Suframa, que administra a Zona Franca de Manaus, Mauro Costa foi um dos nomeados por Serra, cujo pedido citado apareceu, na Folha de ontem, em texto sobre a demissão inexplicada.
O problema todo decorreu da metamorfose de Mauro Costa, que se transformou, ele próprio, em mercadoria da Zona Franca. No governo cujo deus é o mercado, era inevitável que o Mauro-mercadoria fosse mercadejado. Não é coisa de país asiático, não. Nem acontece só a menininhas. Lembro muito bem que, há um bocado de anos, Carlos Machado, "o homem da noite", trouxe um cacho de argentinas para sua boate. Lá, selecionadas milimetricamente. Aqui, logo aprovadas com os testes da vista, do olfato e, em vários casos, do paladar.
O jovem ricaço paulista da família Barberis, que viera correr no Rio com sua Ferrari "Testarossa", descansou as noites no convívio com outro tipo de puro-sangue, encontrável na pista da boate de Machado. Mostrou logo que sabia escolher tão bem máquinas de aço como outras máquinas. Feita a corrida, não quis embarcar para São Paulo só a Ferrari de aço. Queria levar as duas. Havia, porém, o contrato rigoroso, cheio das precauções de Machado. A negociação foi longa. Mas ao preço de duas Ferraris, o corredor levou para São Paulo seus dois bólidos.
Quando Fernando Henrique Cardoso convidou o governador Amazonino Mendes para uma conversa, a mercadoria da transação já estava definida de parte a parte. Eram notórias as tentativas do governador para derrubar Mauro Costa, com quem brigara. E Fernando Henrique queria de Amazonino Mendes que dobrasse os deputados da Amazônia contrários à reeleição ou ainda indecisos. As garantias de permanência do superintendente, dadas por Fernando Henrique ao senador José Serra e ao secretário-geral do PSDB, Arthur Virgílio Neto, foram substituídas pela transação em que Mauro Costa foi a mercadoria. Amazonino Mendes só precisava combinar as providências com o coordenador da reeleição Sérgio Motta.
A reeleição foi aprovada com a contribuição de Amazonino Mendes, como bem depois documentaram as gravações divulgadas pela Folha. Mas Fernando Henrique, ante as irritações provocadas pela próxima demissão de Mauro Costa, já espalhada em Manaus pelo governador, relegou o compromisso de fazê-la e não deu qualquer satisfação. Amazonino sentiu-se traído.
Vem a divulgação das fitas. O governo não pode admitir a CPI: a infalível quebra de certos sigilos bancários e registros telefônicos podia levar à catástrofe. Foi inventada a farsa de investigações, no âmbito da impotente Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, cuja encenação se faria com os comparecimentos dos conhecidos compradores e vendedores de votos, só para tapear a opinião nacional.
Entre outros embaraços da farsa, os governadores Amazonino Mendes e Orleir Cameli, acusados de comprar votos junto com Sérgio Motta, recusaram-se a ir à comissão. Quinze dias de vai-não vai. Respostas diárias de Amazonino aos intermediários: para mim não faz diferença, quem precisa que eu vá, para dizer por aí que a reeleição não foi aprovada com votos comprados, é o Fernando Henrique; ele me traiu, agora resolva aí com vocês.
Já no desespero, mobilizaram-se para negociar com Amazonino Mendes o deputado Inocêncio Oliveira e o senador Antonio Carlos Magalhães, mas como portadores de uma nova proposta: Amazonino compareceria e Fernando Henrique, em retribuição, cumpriria o relegado compromisso de demitir Mauro Costa. Amazonino não aceitou, submetendo a comissão a um bolo vexatório: não recebera as garantias de que não haveria outra traição. E só apareceu, agora, depois de recebê-las (consta que uma delas foi o aval de Antonio Carlos Magalhães ao compromisso de Fernando Henrique -mas seria constrangedor afirmar, aqui, que um presidente da República precisa que sua palavra seja avalizada).
O Planalto negocia com muitas mercadorias, mas, como sabem muitos dos que lá negociaram compromissos não cumpridos, não é uma zona franca.

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