São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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O universo renascentista de Antonio Callado

SILVIANO SANTIAGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A terceira dimensão em pintura anula a existência do dinâmico (...) porque para ser percebida, em sua ilusão, exige a fixação do espectador num ponto ideal a partir do qual (...) essa ilusão é fornecida. Essa ilusão só pode ser apreendida enquanto conjunto. E esse ponto teórico, onde devem deter-se os dois ou três segundos iniciais da atenção do espectador, que são o essencial da sua contemplação (já que a apreciação do detalhe se dá independentemente da apreensão do conjunto) é importantíssimo."
João Cabral de Melo Neto, "Joan Miró"

"Crônicas de Fim do Milênio" reúne, postumamente, textos de Antonio Callado publicados na Folha. A crônica de Callado é a miniatura do seu romance. Pela leitura microscópica delas, pode-se, pois, fazer uma avaliação atual da sua escrita como um todo. Neste fim de milênio que nos toca viver, Callado se apresenta como um artista renascentista. Convive ele com Autran Dourado que, por sua vez, é um romancista barroco, perdidamente embaralhado nos labirintos da contra-reforma aclimatada em Minas Gerais. Por esse viés inesperado, Callado e Autran ocupam um lugar especial na literatura brasileira contemporânea.
Cronologicamente, os dois romancistas se situam na última leva modernista, a chamada "geração de 45", mas o conjunto da obra deles nos leva a considerá-los como os escritores contemporâneos mais afinados com a tradição clássica ocidental. Como na imagem do asno de Buridano, que Callado tanto aprecia, são puxados de um lado pela já hegemônica forma modernista e, pelo lado oposto, pelas guloseimas raras oferecidas por aquela tradição aos verdadeiramente eruditos. Os dois tornaram possível o trânsito original e elegante da nossa literatura para a pós-modernidade. Ou para a "baixa modernidade", como Eduardo Portella prefere classificá-la.
O que se deve entender pelo modo renascentista de ser e escrever de Callado? João Cabral pode nos servir de guia ao comentar, na epígrafe extraída do ensaio "Joan Miró", a invenção da perspectiva na Renascença e o efeito ilusório proporcionado pela terceira dimensão. Callado traz o princípio de construção em perspectiva para a escrita literária brasileira no momento histórico em que os últimos grandes modernistas (na prosa, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa) descobriam que o seu precioso e heróico legado se perdia em formalismos. A opção por forma-e-movimento tinha tudo a ver com a exibição decorativa dum pulsar estéril.
A composição em perspectiva do texto de Antonio Callado (de quem está também sendo relançado "Reflexos do Baile") dialoga com a cultura política de um povo. Por isso, em primeiro lugar pressupõe o olhar do observador. Este, qual um jornalista, faz o mapeamento dos acontecimentos cotidianos e seleciona o fato relevante para inscrevê-lo, em palavras, no centro do quadro e em primeiro plano. Pergunta o observador ao desenhar o esboço: o que têm em comum o pastor, que dá pontapés e socos na estatueta da Mãe Santíssima, com o juiz de Pirapozinho, que manda algemar a sem-terra Diolinda Alves de Souza, mãe de um menino de dois anos? Responde o escritor, delineando em perspectiva o quadro: o desrespeito à Igreja e o descaso pela Reforma agrária. O achincalhe à Justiça divina e terrena. Contra o céu de um "outubro anti-mãe", o cronista destaca a trama "de uma guerra contra a mãe". Os agressores, por outro lado, também são desenhados em jogo complementar e oposto: "Os engravatados da Igreja Universal e os do governo federal se assemelham".
O esboço inicial desse quadro renascentista, como diz o guia João Cabral, é equilibrado e regido pelos princípios de proporção, destaque e contraste. As duas mães, a divina e a terrena, se assemelham no padecimento moral: "Nossa Senhora é tratada com o desrespeito com que só era tratada antes a chamada mulher de malandro: a tapas e chutes. E uma mulher direita é presa e algemada em sua casa como antigamente só se fazia com meliantes considerados de alta periculosidade". Na narrativa em terceira dimensão de Callado, conta mais o equilíbrio das massas do que o ritmo da ação. Ensina João Cabral que, na pintura renascentista, só se permite o ritmo para realçar a estabilidade geral do quadro, sem a perturbar ou a ameaçar.
Na sucessão aparentemente apressada das crônicas jornalísticas, os dois personagens maternos vão sendo substituídos um após o outro sem que o ritmo global do livro os afete. A figura da mãe ofendida reaparece como a "mãe-pátria", lembrada no cuidado que tem Camões por essa "mãe pródiga e devassa", ou na angústia de Vinícius de Moraes que, não podendo mais regenerá-la, adota-a como filha, a "patriazinha".
Em outra crônica, ela reaparece como a "língua materna", que deixou de ser cultivada como "memória viva". Numa terceira, o cronista pede às autoridades eclesiásticas de Goiás para que "o Carnaval revisite o ventre materno" de onde saiu: o grande rancho das Baianas que caminhava adiante da procissão dos ourives. A figura da mãe pode ser a prefeitável Yvonne Bezerra de Mello, que recebe de uma madama uma cusparada no rosto, ou a destemida Marli Pereira Soares, "a nossa Chico Mendes do asfalto". Pode reaparecer sob a forma das sofridas "Mães de Acari", representadas por Edméia da Silva Euzébio. Simbolizadas todas pela palmeira do Ceilão que, no aterro do Flamengo, morre ao dar à luz uma flor. Qual a Iracema de Alencar, deixa 500 quilos de sementes. Ainda, e finalmente, pode ser ela a mãe rural brasileira, desentranhada por Lena Lavinas na Constituição de 1988. Juridicamente, ela só existirá se for tutelada por algum filho-macho.
Essa trágica constatação da condição feminina no Brasil leva o cronista a ler "Dafnis e Cloé", romance pastoral clássico. Nele, Callado descobre que, à sombra da predominância masculina, "já se manifestam, também plenamente, a astúcia e a inventividade feminina para burlar os decretos da masculinidade".
No universo renascentista de Callado, a "virtú" (se se puder transferir o significado masculino desse conceito para a condição feminina) se expressa pelo "ecoísmo". Comentando a história da paixão de Eco por Narciso, o cronista condena a vaidade exasperada do homem, para em seguida observar que nunca se fala das qualidades embutidas no comportamento abnegado da ninfa Eco. Pergunta ela: "Quem é que quer ser uma criatura tão apaixonada, tão dedicada a outra pessoa, que não tem mais tempo nem vontade de cuidar de si própria?". Eis o "ecoísmo".
Ainda dentro dessa linha de leitura, agora de maneira mais compacta, diga-se que os "dois engravatados", responsáveis pelo outubro anti-mãe, são substituídos pelo representantes das "classes dominantes" que, "nem sob pressão, perdem o aplomb, isto é, a imemorial certeza de que jamais deixarão de dominar". São eles que querem transformar a mãe-pátria e a língua materna num carbono ruim da Europa ou um desmaiado xerox dos Estados Unidos. Este país ocupa lugar destacado e contrastivo na pintura renascentista de Callado. Tanto na interpretação da guerra contra o Vietnã quanto no bloqueio a Cuba e na implantação da ditadura militar no Brasil.
Numa época de desmantelamentos, escombros e caos, a composição em perspectiva da crônica de Antonio Callado recria um espaço ilusório e utópico, no qual será possível o reaparecimento de seres humanos numa cidade humanizada. Como no caso de Tolstói, a literatura é "um simples meio de chegar a um homem ético, num mundo de harmonia entre os povos".
Por tudo isso, o cronista não tem receio de empregar no seu texto, desde que bem definido o termo, a anacrônica palavra herói. Heróis são as figuras que se alçam ao primeiro plano e se situam ao centro do quadro em perspectiva. São as sucessivas figuras maternas. Também, "os pobres altivos, os que não têm poder, mas têm brio, os que quase não têm direitos, mas sofrem e gritam contra isso". São, ainda, os que lutam pelo bem da mãe-pátria, como os 18 do Forte. "Foram heróis os que caíram ali (em Copacabana)", tinham "toda a crença num mundo melhor e toda a porralouquice dos heróis".
A composição em perspectiva exige "a fixação do leitor num ponto ideal" a partir do qual poderá ele receber um ensinamento hoje: a necessidade coletiva do enrijecimento moral. Este advém da compreensão global do efeito ilusório buscado pelo cronista que, por meio da composição em perspectiva, constitui e institui, à sua imagem e semelhança, o público das suas crônicas. Em literatura, essa forma de composição (esse modo de ser) se confunde com o desejo de o cronista proporcionar ao leitor o patamar de onde poderá fazer um julgamento moral sobre os materiais universais do cotidiano que tanto nos oprimem e deprimem.
Daquele patamar, cronista e leitor podem desentranhar na "Enciclopédia Britânica" a figura de meio santo do general Giap. Ali está ele escondido sob o nome de Vo Nguyen Giap. Callado transforma o revolucionário "Vo" vietnamita no utópico "Vô" brasileiro para concluir: "Giap acha que é 'o povo' que ganha a guerra, não são as armas". Não se trata do povo de que falam os políticos populistas (e são legião de corruptos na nossa terra), mas do povo como o gênero humano finalmente civilizado. O povo de que falam, no seu otimismo esclarecido, os pensadores utópicos renascentistas.

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