São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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Os segredos da bomba soviética

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Entre 1945 e 1949, os EUA, único dos contendores a sair inteiro e enriquecido da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), monopolizavam o mais poderoso de todos os artefatos de destruição, sendo capazes, se assim desejassem, de alcançar a hegemonia política sobre o planeta. A explosão (em 1949, quatro anos depois dos dois artefatos lançados sobre o Japão) da primeira bomba rival, cujo projeto fora, em boa parte, obtido por meio da espionagem, alterou radicalmente esse quadro, inaugurando entre as duas superpotências a corrida nuclear, que durou exatamente quatro décadas.
Os detalhes do Projeto Manhattan são conhecidos e renderam vários livros, filmes e até mesmo thrillers. A história da bomba atômica soviética é, no entanto, uma das duas ou três chaves para a compreensão do nosso tempo.
David Holloway, irlandês de nascimento, ensina ciência política na Universidade de Stanford, Califórnia, EUA. Seu "Stálin e a Bomba", recém-lançado no Brasil, foi publicado originalmente há três anos e resulta de uma pesquisa que, embora principiada ainda nos anos 70, tornou-se realmente possível só a partir da segunda metade dos anos 80, primeiro com a glasnost de Gorbatchov e, em seguida, com o fim da URSS. Seu livro é uma história minuciosa do programa nuclear soviético, que começa com os avanços anteriores da física russa, narra os problemas decorrentes da era do Grande Terror e descreve a aceleração desencadeada pela detonação da bomba americana sobre Hiroshima no final da Segunda Guerra.
A obra pertence a uma nova safra de estudos que se beneficiam da abertura dos arquivos soviéticos para os pesquisadores. Convém lembrar que, antes da glasnost, a sovietologia ocidental, misturando não raro a investigação detetivesca à pura e simples adivinhação, era um campo mais propício para Sherlock Holmes do que para historiadores convencionais.
Assim, se, para os partidários da URSS, seu fim foi uma decepção, para o público em geral e para os historiadores em particular, ela ensejou oportunidades inesperadas e uma avalanche de informações que levarão ainda anos para serem devidamente metabolizadas.
O livro é um passo importante nessa metabolização, mostrando equilibradamente que, sim, a bomba russa foi em boa parte obtida por meio da espionagem, mas que essa operação não teria utilidade alguma se a ciência soviética não estivesse de antemão preparada para processar seus resultados.
Folha - Stálin, ao desenvolver a bomba, pensava em termos agressivos ou meramente defensivos?
David Holloway - Houve basicamente duas decisões. Uma, durante a Guerra, estabeleceu, meio por via das dúvidas, um pequeno projeto, sem certeza de que a bomba podia ser mesmo construída. A outra, a decisão principal, foi tomada depois de Hiroshima. Stálin não acreditava na possibilidade de guerra no curto prazo. Para ele, haveria uma nova guerra em 15 ou 20 anos e, portanto, ele deveria preparar a URSS para isso, com a bomba, mísseis, radares, aviões a jato. Seu medo era o de que os EUA usassem a bomba mais como uma forma de pressão política. Como desejava um mundo dominado pelo comunismo, via a bomba no contexto da expansão soviética.
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Folha - Qual foi o papel da espionagem?
Holloway - O exame de alguns memorandos de Kurtchátov (o diretor científico do projeto soviético), estimando o valor das informações recebidas, deixa claro que a URSS recebeu informações extremamente minuciosas sobre o projeto Manhattan, com detalhes do projeto da primeira bomba de plutônio americana, da qual a primeira bomba soviética, testada em 1949, é uma cópia direta. A espionagem foi muito importante, mas é necessário contrabalançar esta afirmação dizendo que os físicos soviéticos eram ótimos e puderam, por isso, fazer bom uso das informações recebidas.
Folha - Livros recentes afirmam que gente do alto escalão do projeto Manhattan teria passado informações aos russos.
Holloway - Não há provas de que Oppenheimer, Szilárd, Niels Bohr ou Fermi tenham passado informações úteis à URSS. A fonte mais importante foi Klaus Fuchs. Ele fez, ao ser preso, uma confissão, descrevendo informações que transmitira, e seus detalhes podem ser cotejados com os memorandos de Kurtchátov que, num caso específico, afirma que se trata de informação importantíssima.
Folha - Qual foi o papel do trabalho escravo e do aparato repressivo?
Holloway - O aparato policial foi muito importante para o projeto, e o encarregado de construir a bomba era Lavrenti Beria, o chefe da NKVD e responsável pelo Gulag. Boa parte da mineração e da construção que se tornaram necessárias a partir de 45 foi feita com trabalho forçado. Na virada dos anos 40/50, havia centenas de milhares de pessoas envolvidas, e os prisioneiros que trabalharam no projeto atômico, mesmo quando sua sentença já havia sido cumprida, não eram habitualmente soltos, mas sim mandados a campos ainda piores para não revelarem nada do que vinham fazendo. Isso diz respeito ao trabalho não-qualificado.
Alguns dos pesquisadores também procediam dos campos de prisioneiros, mas os cientistas, em geral, não, embora vivessem e trabalhassem fechados em condições de segurança máxima, intensamente vigiados por Beria e seu aparato policial. Foram usados, além disso, cientistas alemães capturados que, mesmo vivendo em boas condições, eram, naturalmente, prisioneiros de guerra.
Folha - A política repressiva do país prejudicou o projeto?
Holloway - Pode-se dizer que a repressão prejudicou a física soviética nos anos 30. Um dos principais institutos de física, em Khrakov, na Ucrânia, foi destruído pelos expurgos. Ótimos físicos foram presos e executados ou morreram. Mas, após Stálin assinar seu decreto, exatamente duas semanas depois de Hiroshima, o aparato repressivo e a economia controlada contribuíram para o desenvolvimento do projeto. Conta-se que, quando se preparava um expurgo dos físicos, em 1949, Beria intercedeu junto a Stálin que, por sua vez, concordou em deixá-los em paz: "Podemos fuzilá-los depois".
Folha - Qual foi o peso do projeto na economia soviética?
Holloway - Não tenho cifras exatas, mas creio que foi enorme. Começando quando o país estava devastado pela guerra, o projeto envolvia, por exemplo, instalações industriais imensas que, requerendo muita energia elétrica, deixaram regiões inteiras sem eletricidade. Como Stálin começou também projetos para desenvolver radares, jatos e mísseis, grande parte da capacidade técnica e científica do país foi tragada pela indústria militar, o que acarretou um grande desequilíbrio entre esta e as indústrias destinadas aos civis. A primeira progrediu, enquanto estas ficaram para trás.
Folha - De que tipo de informações dispunha o Ocidente durante a Guerra Fria?
Holloway - O Ocidente possuía um quadro geral, mas não os detalhes. Há, por exemplo, um memorando, de 1949, do diretor da CIA para o presidente Truman, dizendo que um teste nuclear soviético não ocorreria antes de 1950 e, mais provavelmente, só em 1952. Esse memorando foi escrito seis ou oito semanas antes do teste soviético. Outros tipos de informação, porém, podiam ser recolhidos e analisados. Assim, quando os soviéticos testaram sua primeira bomba, os EUA recolheram precipitação radiativa e, de sua análise, deduziram que tipo de bomba fora detonada. Três semanas e meia mais tarde, o presidente Truman anunciou que seu governo tinha provas da detonação e, pega inteiramente de surpresa, a URSS fez declarações grotescas negando o fato.
Folha - O que saiu errado para que ocorressem incidentes como o de Tchernobil?
Holloway - Uma das consequências do projeto soviético foi um certo estilo de fazer as coisas muito depressa e em segredo, sem levar em consideração as questões de saúde e segurança. Desenvolveu-se também uma elite nuclear cuja fé na energia atômica não tolerava qualquer crítica. Foi só depois de Tchernobil que se tornou possível criticar ou discutir publicamente certos aspectos do programa nuclear.
Folha - Qual o legado do programa nuclear soviético? A ameaça de armas nucleares espalhadas nas ex-repúblicas soviéticas é real?
Holloway - Embora meio exagerado, há um perigo real. Com a desintegração da URSS, o controle sobre isso tudo enfraqueceu muito. É algo preocupante, pois não se sabe como lidar com o complexo nuclear maciço que cresceu durante a Guerra Fria.
Folha - Você, ao começar sua pesquisa, tinha idéia do que ocorreria entre 1989 e 91?
Holloway - Absolutamente não. Fui tomado de surpresa. Creio que tive sorte, porque pude ter acesso a pessoas que nunca imaginara poder encontrar, a lugares que não acreditava poder um dia visitar e a arquivos nos quais não pensara que poderia pôr os pés.

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