São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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As surpresas de Alice Munro

JOHN UPDIKE
DO "THE NYT BOOK REVIEW"

A escritora canadense Alice Munro conquistou uma reputação literária considerável com base em seus contos. Não se trata de uma proeza fácil. Raymond Carver foi o último norte-americano a consegui-la, e Donald Barthelme antes dele, enquanto Eudora Welty, Flannery O'Connor e Katherine Ann Porter ganharam fama numa época em que a ficção curta ainda era um dos principais componentes das revistas populares.
Os contos de Munro, que começaram a sair na "The New Yorker" há 20 anos, se caracterizaram, desde o início, por serem ambiciosos: bem medida complexidade e multiplicidade de trama, clareza intensa de fraseado e imagens, honestidade psicológica excepcional, desejo de penetrar fundo.
Há um quê de resistência, de alcance ousado em Munro. Somos informados, acerca de uma de suas heroínas não tão intercambiáveis assim: "Gloria havia feito um curso de redação criativa, e o que o instrutor lhe disse foi: 'Coisas demais. Há coisas demais acontecendo ao mesmo tempo, e pessoas demais' ".
Outra delas comenta suas qualidades de dona de casa: "Na minha própria casa eu muitas vezes me via procurando um lugar para me esconder -às vezes das crianças, mas mais frequentemente das tarefas a serem feitas, do telefone que tocava, das conversas dos vizinhos. Eu queria me esconder para poder me ocupar com meu verdadeiro trabalho, que era uma espécie de cortejar de partes distantes de mim mesma".
Nos primeiros contos de Munro esse cortejar assume uma abordagem autobiográfica, retrospectiva. Uma heroína reconhecível emerge do embaralhar das variações ficcionais. Ela passou a infância num ambiente rural de sobrevivência difícil, na região do lago Huron.
Inteligente, ela faz faculdade e se casa; ela e o marido se mudam para a Colúmbia Britânica, geralmente para Vancouver, e têm filhos. Mas ele possui algo -esnobismo, fragilidade- de profundamente insatisfatório, eles brigam muito e ela acaba tendo um amante, geralmente um homem de tipo operário, pé no chão, e o casamento desmorona. Agora, livre do marido, nossa heroína tem casos e vive uma vida de independência boêmia, quer seja identificada como atriz de televisão ("Simon's Luck"), dona de livraria ("Differently") ou editora ("Dulse").
Gostamos dela, é claro, em seu avanço atento em meio a um mundo repleto de possibilidades românticas, fúria conjugal, prole comovente (normalmente filhas) e sinais de envelhecimento impossíveis de ignorar.
Ela não é virtuosa nem vítima -é vital. Ao norte dos moralismos ruidosos e da mania de empreender cruzadas dos Estados Unidos, as coisas no Canadá são o que são, desde a "energia dura do sexo" até a natureza "que nunca nos engana -somos sempre nós que enganamos a nós mesmos".
O "cortejar de partes diferentes" dela mesma levou Munro, em seus contos posteriores, a empreender uma reconstrução da vida de seus antepassados. Com sua liberdade de âmbito, suas surpresas minuciosamente preparadas e sua imaginação histórica, esses contos se assemelham a poucos outros.
Seria preciso retroceder a "Hadji Murad", de Tolstói, ou a "In the Ravine", de Tchekov, para encontrar uma amplidão semelhante. O realismo doméstico habitual, em seu veio frequente de testemunho pessoal, impõe um alto padrão de autenticidade; pedimos à ficção curta não tanto que nos transporte, mas que soe verdadeira.
Munro impõe um desafio a si mesma: transportar o leitor a uma cidade enlameada e barulhenta de Ontário na década de 1870 ("Meneseteung"), vivenciada pela sensibilidade da única poeta da cidade; a uma cidade fabril da época da Primeira Guerra Mundial ("Carried Away"); ao "mato fechado" da divisa do Ontário de 1850 ("A Wilderness Station") e à isolada e montanhosa Albânia de 1920 ("The Albanian Virgin").
A parte albanesa deste último conto é excitante em sua antropologia transmudada, mas a chegada da heroína numa livraria canadense bem iluminada muito semelhante àquela vista em "Differently" soa relativamente chocha. Forjar uma relação entre o passado historicamente remoto e o presente e ajustar seus temas de magnetismo e infortúnio sexual a ambientações repletas de regras de repressão pré-freudiana são problemas que Munro resolve, mas nem sempre sem sinais de tensão.
O senso que Munro tem dos caprichos imperiosos do sexo a leva a usar de violência em seus temas, sem falar em sua técnica. Duas dessas histórias ("Carried Away" e "Fits") contêm decapitações, e, em outra ("Vandals"), uma onda de vandalismo é desencadeada contra a casa de uma viúva por uma menina em que ela confiara.
Em "Labor Day Dinner" a violência surge de repente, no final de uma viagem de feriado empreendida por uma família tipicamente complicada e conflitante, sob a forma de uma quase-colisão num cruzamento. Os adultos, no banco da frente, ficam tão atordoados que ao chegarem em casa, o filho, no banco de trás, lhes pergunta: "Vocês estão mortos? Não chegamos em casa?". Boa pergunta. Ser vivo e estar em casa nem sempre é uma condição definida.
Embora nem todos os contos tenham me propiciado iluminação e deleite iguais, a principal reserva que faço a "Selected Stories" (Alfred Knopf, 545 págs., US$ 30) é o próprio livro em si.
Todos já foram publicados em formatos mais agradáveis em coleções anteriores, das quais a mais recente, "Open Secrets", saiu há apenas dois anos. Podemos apenas supor que o objetivo de "Selected Stories" é que seu lançamento renda homenagens, como esta que acabo de prestar.

Tradução de Clara Allain.

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