São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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Dilemas de um protagonista da luta pela terra

ZANDER NAVARRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Alçado à esfera pública e sob as luzes de intensa divulgação, particularmente a partir do segundo semestre de 1994, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) gradualmente tornou-se o protagonista do debate sobre a reforma agrária, os novos assentamentos e as formas de luta social no campo, bem como em todas as controvérsias recentes, decorrentes do acirramento das disputas políticas em relação às ações governamentais, ou confrontando-se com seus oponentes diretos, os grandes proprietários de terra.
Sua entrada na cena da vida social não decorre de mérito exclusivo, pois inúmeras ações de ocupação de propriedades têm sido desencadeadas pelo chamado "movimento sindical" ligado à Contag/CUT ou, às vezes, por outros movimentos regionais de trabalhadores rurais sem-terra. Mas os louros e as penalizações, quando existem, têm sido recolhidos solidariamente pelo MST, o que resulta de sua maior eficácia ritualística e organizativa (sua bandeira ou sua disciplinada militância, por exemplo), com as disputas pelo acesso à terra lhe sendo rapidamente atribuídas.
Malgrado sua proeminência, este é ainda um movimento social largamente desconhecido, como o demonstram tantas manifestações. Setores conservadores atacam-no com argumentos que camuflam, isto sim, a entranhada resistência à participação política dos "mais pobres do campo", enquanto aqueles à esquerda, de extração urbana e notavelmente desinformados acerca do MST, encantam-se, nestes tempos de refluxo das iniciativas populares nas cidades, com a vitalidade organizativa dos sem-terra e com a retórica radical de seus líderes -mesmo que este aparato discursivo nem remotamente reflita o imaginário político da base do movimento.
Quais são alguns dos aspectos que hoje caracterizam o MST (e, por extensão, o debate sobre a reforma agrária) que, talvez, requeressem melhor análise? Entre muitos, este sintético comentário destaca quatro deles.
Primeiramente, é preciso perceber que a organização dos sem-terra assumiu uma feição nacional somente a partir de sua inserção no Pontal do Paranapanema, quando foi notado por nossas elites e projetou-se às páginas dos principais jornais (e até inspirou uma telenovela). Diante do extremado paroquialismo do sistema político, mesmo com as incontáveis ações antes realizadas em outros Estados, somente então, nos últimos dois anos, é que o MST se tornou visível e conseguiu o papel principal neste enredo. Se é assim, o risco é óbvio: a resolução do "problema do Pontal" poderá secundarizar novamente a representação dos sem-terra, forçando-a a retornar aos grotões da vida rural, isolando-a politicamente e, assim, refluindo as pressões em favor da reforma agrária.
O segundo aspecto que talvez mereça destaque é que o movimento, pelo menos na opinião pública (e com o apoio da mídia, por certo), tornou-se sinônimo exclusivo de ocupações de terra. Embora a história do MST, ainda não escrita, possa ostentar um vasto repertório de ações, em diversos campos -algumas de indiscutível mérito social, como a campanha de alfabetização realizada em seus acampamentos e assentamentos-, o fato é que tal associação consolidou-se.
A consequência é que se estreitou o campo de ação de suas lutas no campo, que vem permitindo seu fácil confinamento, seja pelos limites estipulados pela lei ou, então, pelos mecanismos que a fértil imaginação do atual governo rapidamente implantou, como o demonstra o aplaudido (pelos setores conservadores) "pacote da reforma agrária", recentemente lançado. Este é um claro limite para o MST, pois, ao não se alterar mais ambiciosamente, poderá defrontar-se muito em breve com barreiras de difícil transposição política.
Os assentamentos rurais formados nos últimos anos, seu papel e resultados, é outro dos temas principais. Merecem aprovação, como resultado da aplicação de fundos públicos? A confusão ocorre porque a resposta pode variar: se considerados tanto a situação social anterior dos sem-terra como o estado de semi-abandono das terras desapropriadas, os assentamentos representam uma política pública de razoável sucesso, criando novas formas de ocupação de custo aceitável. Se analisados, contudo, apenas pelo foco tecnológico e produtivo dos sistemas agrícolas implantados nas áreas reformadas, o resultado é largamente insatisfatório, pois os assentados reproduzem, quase sempre, uma agricultura de baixa produtividade, que apenas garante uma sobrevida às famílias beneficiadas, especialmente nas regiões mais atrasadas.
Mas é lícito perguntar, neste caso: por que seria diferente, se o desempenho produtivo da agricultura brasileira (incluindo os grandes produtores), no geral, é medíocre, diante de suas potencialidades? Portanto, é uma proposição inteiramente mistificadora e parcial aludir que "o resultado (dos assentamentos) não faz juz ao esforço e ao preço pagos pela sociedade", como pontificou recente pesquisa da Confederação Nacional da Agricultura.
Por fim, destaca-se ainda outra característica saliente da organização dos sem-terra e que é também um de seus limites principais, particularmente se nosso regime político gradualmente avançar na direção de sua institucionalização. Desafortunadamente, o MST tem seguido, em sua estruturação interna, uma trajetória quase nada democrática e, externamente, apenas retoricamente tem dirigido seus esforços para a democratização real dos espaços sociais em que exerce influência.
Provavelmente, este apego meramente instrumental à democracia, que não é típico apenas deste movimento social, seja uma de suas facetas mais frágeis, pois não contribui para enraizar as oportunidades reservadas aos mais pobres do campo como expressões legítimas das disputas políticas, pressuposto absolutamente necessário para a democratização de sociedades tão desiguais como a brasileira.

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