São Paulo, domingo, 29 de junho de 1997
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Canibais do grande salto para trás

NICHOLAS EBERSTADT
ESPECIAL PARA O "NYT BOOK REVIEW"

No final dos anos 50 e início dos 60, uma fome prolongada e terrível assolou a China. O custo humano foi mais alto do que em qualquer período de fome nos tempos modernos -e é bem provável que tenha sido o maior da história do homem. Embora uma contagem precisa do número de vítimas não seja jamais possível, as análises ocidentais subsequentes dos números oficiais do censo chinês indicaram que aproximadamente 30 milhões de chineses pereceram entre 1959 e 1961. Ainda hoje, a verdadeira magnitude dessa catástrofe é quase incompreensível: é como se toda a população da Califórnia fosse varrida da face da Terra.
Ao contrário de tantas outras fases de inanição em massa na história da China, essa não aconteceu devido a grandes inundações ou secas excepcionais: os próprios registros meteorológicos da China confirmam que as condições climáticas em todo país foram até um pouco melhores do que as habituais entre 58 e 62, os anos mortíferos. O desastre foi, isso sim, provocado pela ação do homem, não tendo nada de "natural".
Em 1958, o governo comunista de Mao Tse-tung lançou a fatídica campanha "O Grande Salto para a Frente". Apesar das metas extremamente ambiciosas, o programa ocasionou um colapso imediato, sistemático e de proporções nacionais na agricultura chinesa (calamidade nunca antes testemunhada na terra antiga). Apesar disso, em vez de imediatamente corrigir os estragos causados, os impiedosos utópicos da nova dinastia da China insistiram em levar avante seu experimento e teimaram em negar alívio aos desesperados camponeses -aumentando imensa e desnecessariamente o custo humano da tragédia.
Ao contrário de outras monumentais atrocidades de viva memória -o Holocausto, o Gulag- a história da fome patrocinada pelo Estado na China permanece grandemente desconhecida do público mais bem informado de todo o mundo. Pois, ao contrário dos nazistas ou dos líderes da União Soviética, o governo e o partido responsáveis pela grande fome chinesa estão ainda no poder -e ainda suprimem informações sobre a carnificina que promoveram. Com "Hungry Ghosts: Mao's Secret Famine" (Fantasmas Famintos - A Escassez Secreta da Era de Mao), entretanto, está finalmente acessível -de modo magistral- um relato da maior calamidade em tempo de paz deste século.
O autor, Jasper Becker, é um jornalista britânico que serve como chefe do escritório de Pequim para o jornal "South China Morning Post", baseado em Hong Kong. Contando habilmente com fontes acadêmicas ocidentais, documentos não-publicados do governo chinês que obteve e centenas de entrevistas com sobreviventes da fome, feitas na China e além de suas fronteiras, Becker procura recriar o cataclismo com detalhes de arrepiar e, algumas vezes, até mesmo difíceis de suportar.
Os exércitos de Mao Tse-tung "liberaram" o território principal da China em 1949 e puseram-se a trabalhar imediatamente para construir uma nova sociedade. Enquanto os mais recentes governantes da China clamavam governar com racionalidade e "socialismo científico", na realidade, Mao e seus assessores não se julgavam sujeitos nem às leis dos homens nem às leis da natureza. Sustentavam que, com força de vontade, suor e uma ideologia superior, as regras da biologia, química e física poderiam ser reescritas.
Fortalecida por sua fé nesta falsa ciência, Pequim decretou, em 1958, que a China empobrecida alcançaria o Reino Unido em 15 anos. (Um pouco depois, Mao achou esse prazo pouco ambicioso e declarou que a China superaria o Reino Unido em dois anos!) Os primeiros instrumentos nesse esquema milenário foram as recém-organizadas "comunas do povo" no campo, enormes coletivos que socializaram o abastecimento, assim como a atividade agrícola.
Os camponeses tinham licença para comer somente nos refeitórios públicos das comunas como princípio básico, explica Becker, pois, no "Grande Salto para a Frente", "o alvo explícito do Partido Comunista era destruir a família como instituição".
As coisas começaram a dar errado quase que imediatamente. Com a promessa de que a China estava entrando em uma era de abundância permanente, os camponeses devoravam até os grãos que deveriam ser guardados como sementes. Mas, à medida que a produção escasseava, as exigências do Estado por grãos das comunas constantemente aumentavam, pois o governo comunista acabara por engolir a própria propaganda sobre o aumento de safra que supostamente acontecia no campo.
"Em muitas partes do país", relata Becker, "por volta do ano-novo chinês de 1959, a inanição grassou, e os fracos e os mais velhos começaram a morrer". Mas, acrescenta ele, quando "as histórias de falta de alimentos chegaram aos ouvidos de Mao, ele se recusou a acreditar nelas e concluiu que os camponeses estavam mentindo e que os 'direitistas' e os gananciosos kulaks estavam conspirando para esconder os grãos com o propósito de reivindicar mais suprimentos do Estado".
À medida que a fome piorava, o Partido Comunista chinês continuava a negar que havia problema de alimento. De fato, "a China recusava todos os oferecimentos de ajuda, mesmo os provenientes de instituições internacionais neutras, como a Cruz Vermelha". Pior ainda, Becker reporta, "ao longo de três anos após 1958", a China dobrou suas exportações de grãos e cortou suas importações de alimentos. As exportações para a URSS aumentaram em 50% e a China despachava grãos grátis a seus amigos na Coréia do Norte, Vietnã do Norte e Albânia".
A liderança da China também fez o que pôde para obstruir os esforços frenéticos dos fazendeiros para salvarem a si e suas famílias. Becker observa, em tom mordaz, que Mao "insistia que os camponeses continuassem a comer nas cozinhas coletivas, descrevendo-as como o 'principal campo de batalha do socialismo' ". Finalmente, em fins de 1961 e começo de 1962, a situação desnudada forçou o Partido Comunista chinês a reconhecer a extensão da crise que havia criado. As inovações mais mortais do Grande Salto para a Frente foram abandonadas na surdina ou revertidas; quase imediatamente, a fome artificialmente manipulada chegou ao fim.
"Hungry Ghosts" apresenta depoimentos de cidadãos chineses comuns que testemunharam os horrores da vida diária entre 1958 e 1962. Os leitores devem, de antemão, ser alertados de que algumas dessas revelações são de virar o estômago. Por todo o país, a fome levou o povo à morte e a uma degradação inenarrável. No Tibete, "as pessoas comiam gatos, cachorros e insetos. Muitos pais alimentavam seus filhos moribundos com o próprio sangue misturado à água quente", segundo um sobrevivente. Becker escreve que, no noroeste da China, "crianças eram abandonadas ao longo da estrada, em valas cavadas no solo", como última esperança de que algum viajante as descobrisse e delas se apiedasse. O canibalismo, de acordo com entrevistados, tornou-se uma prática alastrada.
Mas a coisa foi pior do que isso: mesmo quando o povo foi aos poucos morrendo de inanição, "os militares chineses criaram um pesadelo de tortura e assassinato organizados" no campo. Basta dizer que Becker provê ampla evidência de que Pol Pot, no Camboja, não foi o primeiro governante marxista a sujeitar os camponeses asiáticos à violência gratuita e inventiva do Estado.
Um dos aspectos mais impressionantes da grande fome da China foi o sucesso que teve Pequim em ocultá-la do mundo exterior. O governo chinês foi auxiliado nessa tarefa vergonhosa por uma procissão de ocidentais tolos ou condescendentes.
Apesar de alguns acadêmicos, jornalistas e políticos ocidentais alertarem sobre a fome enquanto ela estava ocorrendo, manteve-se desconhecida para os analistas ocidentais toda a dimensão demográfica de catástrofe até os anos 80 -quase uma geração depois do evento.
Neste livro forte e importante, entretanto, Becker começa bem a tarefa de preencher as páginas em branco da história chinesa -e, ao fazê-lo, oferece um austero tributo aos mortos e um desafio a nossas consciências.

Tradução de Rachel Behar.

Onde encomendar:
Leia, em quadro à pág. 5-13, onde encomendar "Hungry Ghosts - Mao's Secret Famine" (Fantasmas Famintos - A Escassez Secreta da Era de Mao), de Jasper Becker (352 págs., The Free Press, US$ 25,00).

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