São Paulo, segunda-feira, 30 de junho de 1997
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Do narcotráfico à globalização

ARNALDO CARRILHO

Os mais aquinhoados terão como assistir ao evento. Não demanda muito esforço, bastando-lhes digitar o controle remoto nesta tarde brasileira, madrugada chinesa de amanhã, e sintonizar uma emissora de programação mundial nas redes televisivas a cabo.
Verão centenas de personalidades de todos os quadrantes convidadas para o desenlace festivo de um dos ciclos mais infames da dominação ocidental da Ásia, paradoxalmente transformado, nas últimas duas décadas, em episódio de grandiosa significação para a China e para todos.
O último governador britânico de Hong Kong, o conservador Chris Patten, devolverá o encrave de 1.076 km2 às autoridades de Pequim. A cerimônia contará também com a presença do neotrabalhista Tony Blair, novo chefe de governo britânico, e do príncipe de Gales, herdeiro do trono que já foi o mais vasto dos impérios; os chineses, a seu turno, liderados por seu presidente, Jiang Zemin, comemorarão como se deve a reincorporação.
A partir de então, a ex-colônia da Coroa será uma Região Administrativa Especial (RAE) da China, por no mínimo 50 anos, com alto grau de autonomia, salvo em defesa e diplomacia.
Tudo isso foi acordado em 1984, mediante uma declaração conjunta anglo-chinesa, devidamente registrada nas Nações Unidas. O ato internacional estabelece que a China respeitará as liberdades gozadas pelos 6,3 milhões de residentes na RAE e o sistema jurídico-econômico de Hong Kong até 2047.
Pequim tem todo o interesse em que assim o seja, como parte essencial à sua política de potenciamento. Afinal, atingido o termo do contrato imposto pelos ingleses em 1898, a China herda agora um dos maiores centros de serviços comerciais e financeiros em operação no universo econômico.
Se a Ásia do Leste passou a constituir variável decisiva na equação internacional, a retrocessão de Hong Kong propiciará à China um lugar vigoroso.
Faz 158 anos quase, a rainha Alexandrina Vitória autorizou lorde Palmerston a bombardear as cidades portuárias do decadente Império do Meio, cujo protecionismo exacerbado vetava a "lama estrangeira", i.e., o suco de papoula (ópio) da Índia, comércio monopolizado pela Grã-Bretanha, onde tráfico e consumo eram lícitos.
Hong Kong foi tomada em consequência da interdição chinesa, logo se transformando em entreposto destinado ao lucrativo contrabando da droga, sobre a qual, aliás, os governantes coloniais recolhiam impostos. Depois, novos produtos foram se adicionando, do artesanato às manufaturas e destes às atividades terciárias de hoje.
Pouco a pouco, a China foi sendo arrombada à força, aos ingleses juntando-se os franceses, alemães, norte-americanos, japoneses e russos. Globalizou-se, como se diz nestes tempos.
Mestres na inclusão sintética, ao contrário dos excludentes analíticos do Ocidente, os chineses souberam como tirar proveito de seus dramas e tragédias. Concederam estoicamente valências positivas aos aspectos negativos da mais antiga civilização sobrevivente.
Já em 1974, ainda sofrendo os efeitos do Bando dos Quatro, que empolgou a desastrosa Revolução Cultural, Deng Xiaoping, então vice-premiê, foi a Nova York defender, perante a Assembléia Geral da ONU, o fim dos mitos da auto-suficiência e autarcização, vezeiros no socialismo real.
Desde então, e sobretudo após 1978, a China se preparou para ingressar no campo da competitividade e diversificação. Hong Kong passou a formar, com a mãe-pátria, Formosa e Macau, a Área Econômica Chinesa, sistema de integração que um dia levará à reunificação da maior potência asiática.
Sede de corporações transnacionais, a nova RAE tem mais de US$ 70 bilhões investidos no continente, em interação total com o mercado chinês, onde emprega mais de 3,4 milhões de pessoas. A China, a seu turno, tem investidos mais de US$ 30 bilhões em Hong Kong. As malhas dessa AEC são as que se revelaram mais consistentes, desde a 1ª Revolução Industrial, considerando suas transformações e pesos específicos.
A partir de hoje, a cena internacional não mais será mesma. Os brindes, os poucos discursos, o foguetório e os apitos estridentes das embarcações simbolizam não apenas o ocaso de um Império. Quando o ex-governador acenar do convés do iate real Britannia, que zarpará do píer da Rainha singrando as águas da baía Vitória em sua última viagem, esses geônimos se extinguirão em nome de uma nova era.
O Ocidente e o resto do mundo têm de aprender o convívio com essa nova realidade. Prioridade das diplomacias de todos os países, a China sai reforçada, como quarta economia comercial do mundo, assim dispondo de poder de fogo para afetar todas as outras.
As imagens de hoje, de simbolismo intenso, admitem leituras variadas, como a de uma globalização bem-sucedida em que veio definitivamente se inserir o espírito confuciano dos chineses.

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