São Paulo, quinta-feira, 3 de julho de 1997
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É assim que sua mãe deveria cozinhar

DAVID DREW ZINGG
EM MONTICATINI, ITÁLIA

"Por favor, senhor, quero mais." Charles Dickens Depois de passar duas semanas comendo maravilhosamente e tomando vinhos sublimes sob a direção inspirada do Signor Venanzio Ferrari, meus lábios hiperativos deixaram escapar algumas palavrinhas:
"Se existe paraíso, deve ser parecido com o norte da Itália", disse eu.
Passamos esses dias explorando os prazeres astrais dos povoados montanheses do Piemonte, uma das áreas de comida e vinho menos visitadas na Europa.
Poucos turistas (brazucas ou outros) vão ao Piemonte, e ainda menos chefs do Piemonte se aventuram no além-mar para abrir restaurantes, de modo que a culinária da região é pouco conhecida.
Tio Dave recorda uma foto que viu certa vez, mostrando um jovem garçom italiano servindo almoço ao cineasta Alfred Hitchcock.
O restaurante ficava no Piemonte (acho que era o histórico Restaurante Savona, em Alba), e a foto tinha pelo menos 30 anos de idade. "Hitch" sempre foi um diretor de cinema muito à frente de sua época. Parece que também estava à frente de sua época no tocante à mesa.
Como Hitch descobriu este lugar é coisa que nunca vou saber. Se não fosse pela paciência e boa vontade de Venanzio, um verdadeiro catedrático em matéria da extraordinária produção local, eu jamais teria encontrado este lugar celestial sozinho.
Pequeno é "Bellissimo"
O Piemonte é simplesmente uma entre cerca de 20 regiões italianas, todas as quais demonstram notável individualidade e integridade em termos de cultura, língua, costumes e tradições, arquitetura e, é claro, comida e vinho.
Existe em praticamente toda a Itália uma crença profundamente enraizada na idéia de que o feito à mão, o produzido artesanalmente e o feito em casa é imensamente superior ao industrialmente produzido.
Graças a Deus.
Essa teoria bem-vinda se aplica a tudo, desde sapatos e roupa até mobília, e -mis importante de tudo- a comidas e bebidas.
Este é um grande país de artistas e artesãos que manifestam sua individualidade nos produtos mais comuns.
Tudo que você saboreia demonstra o toque individual e característico do homem ou da mulher que o fez. O "salumi" de produção caseira (esse é o termo genérico, Joãozinho -salame é uma mera subdivisão do "salumi") varia de cidade para cidade.
Tudo é gloriosamente diferente: as massas frescas, servidas em "trattorias" simples como a fantástica Palmira (em Castiglione Tinella, perto de Alba); o pão assado nos fornos "a legno"; o azeite de oliva virgem, moído em pedras de granito que giram lentamente para produzir um líquido apimentado, prensado a frio, um autêntico deleite antienfarte, ou ainda a produção lenta, demorada do autêntico "aceto balsamico tradizionale di Modena" em quantidades minúsculas.
No Piemonte, a cadeia alimentar é tão rica em quitutes extraordinários que o sujeito precisa submeter-se a um treinamento rigoroso para alcançar o nível de apetite exigido.
O "agnolotti" constitui um bom exemplo. É tão comum por aqui quanto o ravioli em outros lugares. Trata-se de uma meia-lua de massa que pode vir recheada com a mais delicada vitela de criação local, ou com carne de vaca ou coelho.
Todos os sabores do Piemonte se revelam nesses pratos -o sabor rico, temperado, agreste, dessas montanhas de vida dura, porém gloriosamente produtiva.
A cadeia alimentar pode ter extensões fascinantes. O "agnolotti", por exemplo, foi feito com gemas de ovos postos por galinhas que perambulam livres, ciscando, alegres, os cereais e ervas do Piemonte.
A vitela usada no recheio veio de uma novilha alimentada com "tagliatelle".
A cadeia alimentar circular faz tio Dave recordar uma canção antiga: "The Music Goes 'Round and 'Round".
Apesar de encontrar-se sob fogo cerrado dos burocratas do Conselho Econômico europeu, em Bruxelas, a Itália ainda conserva um modo de vida em que as pessoas podem comer e beber o que elas mesmas plantam, criam e produzem. É uma experiência que praticamente se perdeu na maior parte da Europa.
And the Winner Is...
No mesmo momento em que tio Dave descobria as glórias de apenas uma região da Itália, o grandioso semanário inglês de notícias "The Economist" declarava a Itália vencedora da Terceira Guerra Mundial da mesa.
Como você sabe, Joãozinho, a "The Economist" é "A" revista semanal de notícias do mundo que fala inglês. Já ouvi gente comentar em Nova York, em torno de alguns dry martinis, que o "The New York Times" tira suas melhores idéias da "The Economist".
Assim, quando, no início de junho, o respeitado semanário publicou um artigo intitulado simplesmente "Os Italianos Viram a Mesa", a notícia realmente chamou a atenção.
Veja se você consegue adivinhar quem os italianos deixaram para trás:
a) americanos
b) brasileiros
c) congoleses
d) franceses
Adivinhou, meu amigo -foram os franceses.
Antigamente a palavra "cuisine" designava cozinha francesa.
A revista informou, a seguir, que nos velhos tempos, quando você queria impressionar alguém, levava a pessoa a lugares com nomes tipo Veau dÓr ou Chambord.
Os maitres eram franceses (prosseguia o artigo), as garrafas de vinho não vinham embrulhadas em palha e a conta chegava à mesa no final da refeição.
François I roubou a boa comida da Itália há quase cinco séculos, e hoje pode-se dizer que os italianos a recuperaram.
Trata-se de uma notícia realmente importante, do mesmo nível, por exemplo, que a invenção da energia nuclear produzida a partir do suor das axilas.
Obviamente a "The Economist" está roubando idéias para suas matérias de tio Dave. Ha, ha, ha.
Nunca consegui me acostumar a comer aqueles pratos franceses caros demais, com molhos demais, que eram trazidos à mesa por um garçom que não conseguia falar nem um pouquinho de nenhuma língua senão a sua.
A comida italiana, como estamos dizendo aqui há algumas semanas, quando é boa é muito, muito boa e muito, muito simples. Ela é feita de ingredientes carregados de sabor e possui receitas simples que preservam a essência da terra onde ela nasce.
Mais do que qualquer coisa, talvez, a magia está em como cada sabor se sobressai, límpido com o som do sino de uma igreja italiana.
Vá com Calma
As pessoas, de modo geral, aderiram de tal modo ao "fast food" que não ligam mais para o que comem, desde que venha dentro de um pão de hambúrguer.
Assim, quando o primeiro McDonald's foi aberto na Itália, um grupo de piemonteses afrontados fundou o primeiro movimento em defesa do "slow food". Hoje o movimento tem mais de 240 filiais voluntárias em 18 países, entre os quais a Bananalândia.
O grupo "Slow food, por favor -somos italianos" tem mais de 20 mil membros. Seu símbolo é eminentemente apropriado: um caracol. Anda devagar e é uma delícia.

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