São Paulo, quinta-feira, 3 de julho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A volta da família

OTAVIO FRIAS FILHO

Foi por volta dos anos 50 que a família ocidental se viu reduzida à sua estrutura biológica mínima: o pai profissional, a mãe hiperativa, um casal de filhos saudáveis. Desaparecia o cortejo patriarcalista de tios, primos, contraparentes e agregados para que a molécula básica, mais eficaz, fulgurasse nos anúncios de revista.
Admitia-se, quando muito, um mascote canino ao pé do sofá, depositário do afeto outrora disperso pela parentela. Era de se imaginar que o terremoto sexual dos anos 60 completaria o que já se encontrava em fase tão adiantada, reduzindo cada um a si próprio, um átomo narcísico perdido no universo dos sentimentos.
Isso de certa forma aconteceu. A consolidação do mercado na economia corresponde exatamente à vitória de um narcisismo racional, calculista, no plano psicológico. São como duas faces da mesma moeda. Mas eis que, passados 30 anos, um novo cortejo familiar se reúne nas festas, nos aniversários, no fim-de-semana.
Há um encanto insólito nessas cenas, como se os antepassados reencarnassem em ex-maridos, ex-esposas, semi-irmãos e quase-primos, uma seiva contínua percorrendo os subterrâneos do DNA humano. Surgem problemas terminológicos. Como chamar, por exemplo, o comadrio de duas mulheres que têm filhos de um mesmo homem?
Acaba de sair no Brasil o livro "Monogamia", do psicanalista inglês Adam Phillips. São aforismos em estilo francês, altissonantes e paradoxais. Como observou Matinas Suzuki Jr. ao apresentar o livro na Ilustrada, têm algo do hoje banalizado "Fragmentos de Um Discurso Amoroso", de Roland Barthes, bíblia de uma geração.
O autor parece ver uma crise tanto na idéia de monogamia como no que seria o seu oposto, a promiscuidade. "O único relacionamento verdadeiramente monogâmico é aquele que temos conosco mesmos", conclui um trecho. Nosso egoísmo gostaria das vantagens de ser e de não ser monogâmico, o que é impossível.
A grande família Ex é o testemunho dessa impossibilidade, embora ela não deixe de ser uma família, com suas alegrias e tristezas. No tempo de nossos bisavós, era fácil manter-se monogâmico. Exceto na faixa estreita da prostituição, a indisponibilidade sexual era completa, o preço a pagar, muito alto.
A idéia de felicidade estritamente pessoal não existia, alguém era feliz (ou acreditava ser, o que aliás é a mesma coisa) em relação aos outros, à família, à pátria, a Deus. O casamento era e continua sendo uma forma de torpor, que por isso mesmo impede que a pessoa caia num excesso de autoconsciência, que se baste sozinha.
Kierkegaard, que nunca se casou, achava que o amor romântico era um fato da natureza; só o amor conjugal era comparável à obra de arte. As condições atuais tornam essa arte ainda mais preciosa. Uma intempérie sexual muito mais demorada e difícil de transpor separa qualquer casamento do porto seguro da velhice.

Texto Anterior: Gravidade e globalização
Próximo Texto: SEM JEITINHO; PUXÃO DE ORELHA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.