São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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'Horror econômico' ou 'torpor econômico'?

ROBERTO CAMPOS

"O problema da 'onda rosa' é querer a rosa sem espinhos"
embaixador Lorenzo-Fernandes

Da França, de onde nos habituamos a receber perfumes, patês e "hors d'oeuvres" intelectuais, de superficialidade incapaz de perturbar cabeças sérias (vide os Lacan ou Derrida, objetos de gozação do pensamento universitário do resto do mundo), chega-nos, agora, uma leiturinha estilo de diretório acadêmico, com um tempero "dernier cri". É o livro "O Horror Econômico", de Viviane Forrester (traduzido pela Editora Unesp).
Há alguma coisa na opinião pública desse país que explica por que um palavreado retórico, com discurso "social" de nível estudantil, transforma-se num best seller.
Parte da explicação, evidentemente, é a confusão furiosa em que a França hoje se debate, confrontada com as difíceis decisões políticas requeridas pelos acordos de Maastricht para a adoção da moeda européia.
Mas, indo mais fundo, o fenômeno francês reflete, num tom indisciplinado e declamatório, os reais sentimentos de desconforto e perplexidade que afetam os segmentos das sociedades européias mais atingidas pelo estonteante processo das mudanças tecnológicas.
A dificuldade da sociedade francesa em aceitar os desafios competitivos dos novos bárbaros (americanos e asiáticos) vieram à tona explosivamente, com as greves e os prolongados distúrbios de ruas do final de 1995. Foi uma reação às tentativas do governo de impor um pouco mais de austeridade nos gastos públicos, reduzindo algumas vantagens de aposentadorias e procurando diminuir o déficit, que caminhava para os 5% do PIB, para uma cifra mais alinhada com os compromissos da moeda européia (3%).
O caso da França é particularmente ilustrativo, porque se trata de uma sociedade historicamente caracterizada por um alto grau de corporativismo, sob o guarda-chuva de um Estado poderoso e de uma administração hipercentralizada.
Busca defender encarniçadamente sua economia dos desafios da concorrência tecnológica dos competidores externos -num mundo em que há 37 mil companhias multinacionais com 170 mil subsidiárias, dispondo de talvez 1/3 dos ativos privados.
O livro "O Horror Econômico" foi bem bolado, vamos reconhecê-lo. Mexe com os temores profundos de muita gente, tanto quanto os filmes de monstros que passam na TV depois da meia-noite. Mas, se isso acontece, é porque há por trás questões para as quais muita gente não tem, ou receia, respostas objetivas.
É perfeitamente compreensível que quem se ache titular de algum direito não queira abrir mão dele. Desde o começo dos tempos, um dos desejos mais constantes de todas as pessoas é garantir a segurança da sua situação, tanto material quanto social.
No campo econômico, isso é muito claro. Só gosta de concorrência quem acha que pode ganhar (isto é, tomar espaço à custa dos outros), não quem acha que pode perder. O corporativismo é um instinto universal, não apenas uma perversão de alguns grupos. Quem está de fora tenta entrar e quem está dentro trata de barrar a entrada.
O que está acontecendo desde a explosão da competitividade do sistema internacional, depois de prolongadas crises, é que muitos querem manter a boa vida dos tempos do Estado do bem-estar social. Este, na Europa, acabou provocando um crescente engessamento da economia: a legislação trabalhista dificulta as demissões, os serviços sociais (especialmente de saúde) são extremamente generosos, a compensação pelo desemprego permite a muitos recusar empregos humildes.
Tudo isso no contexto de uma população em rápido envelhecimento e de ininterrupto encarecimento dos cuidados médicos. O problema é que os gastos têm de ser pagos por alguém. E esse alguém, no caso, é a massa ocupada, hoje predominantemente de classe média, cada vez mais educada e qualificada.
Já se foram os tempos em que o marxismo oferecia como solução a luta de classes para expropriar o capitalista, que se apropriava da mais-valia, com a promessa de abundância material para todos e fraternidade universal, após a revolução...
Se alguém ainda acredita nesse facilitário, deve ser como aqueles 39 americanos que há tempos se suicidaram para pegar carona num disco voador anunciado pelo novo cometa que apareceu nos céus.
Agora, não vamos fazer de conta que o problema não existe. Como sustentar o desejo que sentem os favorecidos pelo Estado do bem-estar de manter tudo como está, em face da visível perda de competitividade e de dinamismo tecnológico que essa situação acarretou para os países que mais se gabavam de ser "socialmente avançados"?
Já que não é possível correr simultaneamente atrás de objetivos contraditórios, a pergunta que se impõe é: quanto de que será preciso sacrificar para conseguir, em troca, quanto de quê? Isso pode ser uma indagação altamente sofisticada, ou pode ser resolvido pelos assaltantes de esquina, que se governam pela moral de que o único crime imperdoável é ser vítima...
A vida competitiva é sempre cansativa e pode ser penosa. Em vez disso, muitas pessoas preferem se aposentar e ter uma existência mansa, mesmo ganhando menos. Algumas religiões recomendam reduzir as ambições materiais.
A visão monástica, dando as costas para o mundo, é bem mais antiga do que o próprio cristianismo. Filosofias de renúncia, como a dos estóicos, são igualmente velhas. Hippies e alguns intelectuais recorreram, nos anos 60, às idéias de Gandhi sobre os ashram, aldeias auto-suficientes, em que os homens vivem com aquele mínimo que podem colher, tecer ou fabricar com as mãos. Na Rowery, em Nova York, sentam nas calçadas mendigos que simplesmente optaram por cair fora do "sistema" (da "corrida de ratos"...), como, em Paris, fazem os tradicionais "clochards".
Não é fácil. A economia supercompetitiva dos americanos é hoje a mais próspera do mundo, com os mais baixos índices de desemprego -4,8%, em vez dos cerca de 11% da Europa do bem-estar. Mas é verdade que tem aumentado um pouco a desigualdade. A atenuante é que agora ela se dá segundo linhas de qualificação e competência, e não, como nos tempos das esquerdas inocentes, segundo "classes" de "burgueses" e "proletários".
No caso brasileiro, há complicações adicionais. Nosso corporativismo (dos marajás) não tem a respeitabilidade da tradição francesa. E há um componente demográfico que fica escondido debaixo de safadezas semânticas.
Trata-se do "empulhamento" de chamar de "excluídos" muitos que no máximo poderiam ser ditos "ainda não-incluídos", fabricados pelo espermatozóide delirante. Aos 18 milhões que moravam nas cidades em 1950 foram acrescentados 100 milhões pela paternidade irresponsável.
Para satisfazer a demanda explosiva das expectativas crescentes, precisaríamos de uma economia de altíssimo desempenho. Mas isso colide com as expectativas de muitos de vida mansa, os quais perderiam "status", sem garantia contra eventuais injustiças que possam resultar da briga competitiva. E não temos a sensatez política que, em sociedades mais amadurecidas, permite estabelecer formas aceitáveis de ajuste de interesses.
Tem-se, aliás, exagerado o impacto das novas tecnologias "desalmadas" na crise do desemprego, e assim o faz Viviane Forrester. Estados Unidos e Japão têm densidade tecnológica maior e desemprego menor que a Europa. E mesmo nesta, alguns países como a Inglaterra e a Holanda, que flexibilizaram sua regulamentação trabalhista, conseguiram reduzir o desemprego.
O perigo francês é que, recuando na abertura competitiva, por receio do "horror econômico" da tecnologia "desalmada", acabe o país caindo no "torpor" econômico. O verdadeiro horror é a estagnação.

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