São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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Crítico escreve sobre Pelé

DÉCIO DE ALMEIDA PRADO

Um cínico diria: 22 homens correndo atrás de um pouco de ar comprimido em alguns centímetros de couro. Mas seria ignorar o principal: a habilidade física necessária para que essa bola sempre tão fugidia e rebelde se submeta finalmente ao império da nossa vontade; o esforço dos músculos e a tensão do espírito sem os quais não se dobra o adversário; a identificação afetiva e passional da torcida. Onze homens solitários representando todo um clube, toda uma cidade, todo um Estado, toda uma nação. Decidindo em 90 minutos a felicidade ou infelicidade de milhões de pessoas. O futebol começa como um esporte, uma exibição das potencialidades atléticas do homem: corrida, salto, golpe de vista, resistência, reflexos. E termina como um poderoso símbolo da vida social. Nunca o Brasil foi mais triste do que em 1950, ao perder o título mundial para o Uruguai. Ou mais alegre do que em 1958, ao ganhá-lo na Suécia. Eram 60 anos de aspirações coletivas, de sonhos de grandeza nacional, que se tornavam realidade.
Pelé foi perfeito até nisso: coincidiu com a glória do seu país. A sua história é uma sucessão de prodígios. Aos 14 anos, jogador da divisão especial. Aos 17, campeão, e aos 21, bicampeão mundial. Vezes sem conta, campeão paulista. Campeão brasileiro. Bicampeão mundial por clubes. Nove anos consecutivos, o goleador máximo do campeonato paulista. Mil gols marcados em partidas oficiais aos 29 anos. Uma celebridade internacional, como Brigitte Bardot e Onassis.
Há jogadores de inteligência e jogadores de físico, jogadores cerebrais e jogadores musculares. Jogadores elegantes e jogadores eletivos. Jogadores clássicos e jogadores de improvisação. Jogadores que preparam e jogadores que concluem. Pelé é a síntese improvável de todas essas qualidades contrárias. Nunca passa a bola quando pode chutar a gol. Nunca chuta a gol quando tem um companheiro melhor colocado. É perfeito em tudo: velocidade; força, coordenação de movimentos; cálculo do tempo e do espaço; visão global do campo; antecipação da jogada adversária; combatividade; inteligência; coragem.
Domício Pinheiro, também profissional apaixonado por sua profissão, fixou-o em duas dezenas de imagens. Algumas o apanham em ação: o mágico número 10 -Pelé nunca usou outro- fulgurando na escuridão; o lance acrobático, com o corpo lançado no ar; a explosão infantil de alegria, a comunhão com os companheiros, após o gol; o olho hipnotizando a bola, apesar de a queda não se ter ainda completado; a discussão com o juiz, quando a agressividade latente mostra as garras; o bolo de aniversário, inédito em campos de futebol. Outras fotos o revelam fora do campo: preparando-se para a luta, com a correntinha protetora no pescoço e a musculatura que poderia ser a de um pugilista; o herói popular, cercado por meninos e protegido por soldados eufóricos em tocar com as mãos a divindade; em férias, como qualquer caboclo do interior brasileiro.
Pelé: a Fera, para os comentaristas de rádio; o Negrão, para o povo. Um dos poucos mitos da vida moderna em que a parte da realidade não é inferior à da legenda. O Rei do Futebol -o único rei da atualidade cujo título não parece usurpado.

O texto acima, cujo título original é "Fotos de Pelé", faz parte do livro "Seres, Coisas, Lugares", a ser lançado pela Companhia das Letras.

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