São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997
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FRATERNIDADE ou os perigos da história etnográfica

ROBERT DARNTON

Continuação da pág. 5-9

Rousseau e Ménétra são fruto da mesma cultura e pertenciam à mesma espécie, a do animal macho caçando fêmeas na França pré-revolucionária

Uma cena de taverna semelhante envolveu a compra simbólica de uma mulher. Bussie, amigo de Ménétra, vidraceiro como ele, tinha seduzido a mulher do patrão. Mas eles romperam, e ela ficou atraída por Ménétra. Quando Bussie o colocou a par da situação, em uma taverna, Ménétra respondeu: "Já que você está me dizendo que está tudo acabado entre vocês, eu a comprarei de você por uma garrafa e uma salada. Ele acreditou em mim, e nós partimos na esperança de nos tornarmos irmãos o mais breve possível" (20). Este ritual pode ter sido uma variação ou uma paródia da venda de mulheres, que E.P. Thompson e Lawrence Stone identificaram como uma forma popular de divórcio (21). No caso de Ménétra e Bussie, parece especialmente picante o fato de que a "mercadoria" pertencia ao patrão ("le bourgeois", como os trabalhadores o chamavam). Mas o que interessa é que, por dividirem a mesma mulher, Ménétra e Bussie se tornaram "irmãos".
Há um elemento de classe nesta forma de "Bruderschaft", já que ela criava fortes laços entre jornaleiros e frequentemente os unia contra os patrões. Nada era mais engraçado para Ménétra -ou para Nicolas Contat, outro caso raro de artesão que escreveu uma autobiografia (22)- do que ver um "bourgeois" traído pela mulher com seus empregados. Mas compartilhar uma mulher podia transcender a separação entre mestre e jornaleiro, que não era tão profunda quanto a divisão entre capitalista e proletário na era industrial. Ao transar com a cozinheira de um comerciante parisiense, Ménétra soube que ela também ia para a cama com seu "bourgeois", um tipo jovial que às vezes o convidava para um drinque. Num desses encontros na taverna, ele deu a entender a Ménétra que "eles eram mais do que amigos" (23): por dormirem com a mesma mulher, haviam se tornado irmãos.
Depois de seduzir outra cozinheira, que conheceu por intermédio de um cirurgião-barbeiro e um carpinteiro da Gasconha, Ménétra descobriu que tinha contraído gonorréia. Ele adotou um remédio popular, que incluía abstinência e moderação no consumo de vinho. Enquanto se submetia a esse tratamento, Ménétra fez uma caminhada num domingo com os dois homens da Gasconha. Eles pararam para matar a sede numa taverna:
"Eles colocavam água no vinho. Eu também coloquei. Eles trocaram olhares, sorriram e disseram que eu não costumava fazer isso. Eu fiquei rubro e queria dissuadi-los do que estavam pensando. O cirurgião me disse: (aqui, há uma palavra ilegível no manuscrito) 'Estou certo de que você transou com a cozinheira de madame fulana de tal'. 'Sim', eu disse. Ele respondeu, apontando para o carpinteiro: 'Ele também'. O outro acrescentou: 'E ele também'. Eu respondi: 'Então aqui estão três irmãos, todos os três infectados pelos favores apimentados daquela Circe que oferecia tanta resistência'. Nós três proclamamos nosso desejo comum de que ela fosse para o inferno. Depois de mais conversa, o cirurgião disse: 'Meus irmãos, nós vamos nos recuperar, os três, seguindo o mesmo tratamento' " (24).
A doença venérea reforçou o sentimento de fraternidade, porque os três "irmãos" a haviam contraído da mesma fonte.
O chocante machismo das memórias de Ménétra não deve ser tomado literalmente como uma evidência de como trabalhadores do sexo masculino tratavam as mulheres no Antigo Regime, embora talvez não se distancie da realidade. Como todos os textos, o de Ménétra se enquadra em certos gêneros. Estes são particularmente interessantes no caso de Ménétra, porque envolvem uma mistura peculiar de tradições orais e escritas: a jactância sexual, a narrativa extravagante e as brincadeiras burlescas dos encontros entre homens, combinadas com o "conte" de Boccaccio, a farsa de Rabelais, a picaresca literatura de cordel e o romance erótico. O entendimento do "Journal de Ma Vie" também depende de convenções implícitas compartilhadas pelo autor/ator e pelo leitor/público. Ménétra constrói sua história utilizando dispositivos retóricos padronizados e uma narrativa convencional. Sua história não pode simplesmente ser descartada como uma aberração produzida por uma imaginação especialmente falocrática, porque o relato da caça às mulheres se utiliza de muitos aspectos da cultura ambiente.
Desta forma, por sua individualidade, o "Journal de Ma Vie" é um produto social, construído a partir das formas culturais disponíveis a um vidraceiro na França do século 18. Não importa que Ménétra talvez não tenha causado um grande estrago na população feminina da França, estuprando e seduzindo como ele proclamava, ou que seu comportamento não representava exatamente os padrões de comportamento do Antigo Regime. Suas "escapades" são padrões de cultura. Elas revelam as dimensões simbólicas do mundo habitado pelos machos na França do século 18 e sugerem que os homens estabeleciam fraternidade entre si caçando mulheres, mesmo que isto ocorresse principalmente no plano da fala, compartilhando fantasias masculinas mais frequentemente do que corpos de mulheres.
Depois de ter escrito grande parte da sua autobiografia, Ménétra se envolveu com a Revolução. Tornou-se um típico sans-culotte e participou ativamente do movimento seccional durante o Terror. Olhando retrospectivamente, sua infância em Paris e suas andanças na França durante sete anos parecem tê-lo preparado perfeitamente para o sans-culottismo -seus encontros turbulentos, banquetes fraternais, hipérbole retórica e hostilidade às mulheres, exceto como fontes de comida e sexo. O valor supremo dos sans-culottes, não apenas igualdade, mas "égalité des juissances" (igualdade de gozo) (25), expressava a visão de mundo de Ménétra, impregnada de sexualidade. Os sans-culottes estabeleciam fraternidade entre si não somente cerrando fileiras em defesa da República, mas também bebendo e frequentando prostitutas -e talvez até na violência obscena dos Massacres de Setembro, apesar de eu considerar esta idéia repulsiva e esperar que ela seja incorreta.
Os perigos deste tipo de história obviamente fazem este historiador em particular sentir-se constrangido. Eu concordo com aqueles que argumentam que o distante tom olímpico em narrativas na terceira pessoa frequentemente esconde uma inclinação pessoal; que é inevitável que observadores se envolvam com aquilo que observam; que os historiadores, como os antropólogos, precisam se engajar numa relação dialógica com seu objeto (26). Eu também confesso que simpatizo com a trindade de valores da Revolução. Não tenho qualquer desejo de macular a noção de fraternidade ou de fazer com que a "fraternité" seja suprimida dos frontões de edifícios públicos na França. Mas quero compreendê-la como um ingrediente da cultura popular plebéia do século 18 -algo tão estranho a nós como a caça a cabeças entre os Ilongot e a circuncisão feminina entre os iorubas.
É claro que a versão de Ménétra da fraternidade não esgota o conceito. Em grande medida, o ideal revolucionário constituiu-se a partir de outras fontes, em particular o cristianismo e a maçonaria. Por outro lado, muito do ideário de Ménétra pode ser atribuído à sua mente peculiar. Seria abusivo construir uma mentalidade coletiva a partir de um único documento, especialmente em se tratando de um tão incomum como a autobiografia de um trabalhador do século 18. Mas é também preciso considerar que toda autobiografia representa uma tentativa de dar sentido à vida, e o faz lançando mão de significados disponíveis em seu contexto social.
Consideremos as tentativas de um outro biógrafo de si, ainda mais idiossincrático do que Ménétra, de conferir sentido a sua vida. Jean-Jacques Rousseau escreveu suas "Confessions" mais ou menos no mesmo período em que Ménétra compôs a parte central do "Journal de Ma Vie". Se acreditarmos neste último, os dois se encontraram em Paris, passearam juntos pelos jardins do Palais Royal e jogaram xadrez no Café de la Régence (Ménétra perdeu). A julgar pelas referências no texto de Ménétra e outros escritos seus, ele assimilou muitas das idéias de Rousseau. Essas idéias também aparecem no rousseaunismo popular desenvolvido pelos companheiros sans-culottes de Ménétra, de forma que não é surpreendente encontrar esta tendência no "Journal de Ma Vie". O que é surpreendente é ler a autobiografia de Rousseau tomando Ménétra como referência.
Em suas "Confissões", Rousseau narra uma "escapade" arquitetada por seu melhor amigo, um secretário na embaixada da Espanha chamado Carrio, durante sua estada em Veneza:
"Carrio estava sempre cortejando mulheres. Cansado de estar com aquelas que já eram ligadas a outros homens, ele teve a idéia de ter uma que pertencesse a nós dois. Eu concordei. O problema era encontrar uma de qualidade assegurada. Depois de muito procurar, ele descobriu uma menina de 11 ou 12 anos de idade, que estava sendo posta à venda por sua infame mãe" (27).
Exatamente como no caso de Ménétra e Gombeaut, Rousseau e Carrio consolidaram sua amizade comprando uma prostituta. É verdade que Rousseau nunca dormiu com "la petite Anzoletta", porque ela não tinha ainda atingido a puberdade. Ele e seu sócio pagaram pequenas somas à mãe da menina, aguardando o dia em que tomariam plena posse da sua propriedade comum. Rousseau deixou Veneza antes de a propriedade estar madura.
Após seu retorno a Paris, Rousseau viveu como o sobrinho de Rameau, dos restos de mesas mal postas. Uma dessas mesas pertencia a Emanuel-Christoph Klüpfel, um pastor de Geneva, do círculo do príncipe da Saxônia-Gotha. Klüpfel também mantinha uma menina, e uma vez mais a comensalidade levou à sexualidade partilhada e a laços entre homens, desta vez entre Rousseau e seu amigo mais próximo àquela época, Friedrich-Melchior Grimm. Nas "Confessions", Rousseau conta como ele e Grimm encontraram Klüpfel por acaso:
"Certa noite, ao entrar num café, nós o encontramos saindo para jantar com ela. Nós fizemos troça dele; ele respondeu de forma galante, convidando-nos a participar do jantar e, assim, por seu turno, fez troça de nós. A pobre garota me pareceu ter bom coração, ser muito doce e não se adaptar bem ao seu papel, para o qual ela havia sido o mais bem treinada possível por uma mulher parecendo uma bruxa que a acompanhava. A brincadeira e o vinho elevaram nossos espíritos, a ponto de nos esquecermos de nós mesmos. O bom Klüpfel não desejava ser moderado em sua hospitalidade e então nós três, um após o outro, nos retiramos para um quarto próximo com a pobre menina, que não sabia se devia rir ou chorar" (28).
Normalmente, não se associaria um grande clássico como as "Confessions" de Rousseau a um trabalho primitivo como o "Journal" de Ménétra. Ainda assim, eles são fruto da mesma cultura e seus autores pertenciam à mesma espécie, a do animal macho caçando fêmeas na França pré-revolucionária. Um estranho par, Ménétra e Rousseau. Entretanto, considerando-os juntos da perspectiva do geertzismo, pode-se ter uma nova visão dos sistemas simbólicos por meio dos quais os homens ordenavam suas vidas no estranho e cruel mundo da Europa do século 18.

Notas:
1. Clifford Geertz, "The Interpretation of Cultures" (Nova York, 1973), pág. 29.
2. Giovanni Levi, "I Pericoli del Geertzismo", Quaderni storici XX (Abril, 1995).
3. O texto foi publicado com um excelente comentário por Daniel Roche: "Journal de Ma Vie. Jacques-Louis Ménétra. Compagnon Vitrier au 18ème. Siècle" (Paris, 1982).
4. Os únicos trabalhos comparáveis para o final do século 17 e o século 18 são Alain Lottin, "Vie et Mentalité d'un Lillois Sous Louis XIV" (Lille, 1968) e Valentin Jamerey-Duval, "Mémoires - Enfance et Éducation d'un Paysan au 18ème. Siècle" (Paris, 1981). Alguns dos temas abordados por Ménétra também aparecem na conhecida autobiografia de Agricole Perdiguier, "Mémoires d'un Compagnon" (Paris, 1980).
5. Vide Peggy Reeves Sanday, "Fraternity Gang Rape: Sex, Brotherhood, and Privilege on Campus" (Nova York, 1990); Linda Brookover Bourque, "Defining Rape" (Durham, 1989); e Julia R. e Herman Schwendinger, "Rape and Inequality" (Beverly Hills, 1983).
6. O melhor estudo, apesar de não focalizar especificamente a fraternidade, é um ensaio de Richard Cobb, "The Revolutionary Mentality in France", in Cobb, "A Second Identity - Essays on France and French History" (Londres, 1969), págs. 122-141. Vide também Mona Ozouf, "Fraternité", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), "Dictionnaire Critique de la Révolution Française" (Paris, 1988), págs. 731-741, e Marcel David, "Fraternité et Révolution Française (Paris, 1978).
7. "Journal", pág. 202.
8. A narração de Ménétra de suas seduções em um convento, pelo qual ele havia sido contratado para consertar janelas quebradas, parece derivar de um episódio similar em "La Foutromanie", um romance erótico razoavelmente popular. Ménétra pode muito bem ter baseado outros episódios de sua autobiografia em obras semelhantes. Artesãos especializados eram em geral suficientemente letrados, e os romances eram em geral suficientemente simples, para que o material impresso pudesse penetrar na tradição oral dos jornaleiros. Na literatura popular, como a "bibliothèque bleue", o processo também ocorreu no sentido inverso: histórias da tradição oral foram adaptadas para narrativas impressas. Vide Marc Soriano, "Les Contes de Perrault: Culture Savante et Traditions Populaires" (Paris, 1968), e Roger Chartier, "Lectures et Lecteurs dans la France d'Ancien Régime" (Paris, 1987).
9. "Journal", pág. 95. Eu adicionei pontuação e simplifiquei a sintaxe.
10. Ibid., págs. 172-173.
11. Vide especialmente Foucault, "The Order of Things - An Archeology of the Human Sciences" (Nova York, 1973), que apresenta os mesmos perigos que o geertzismo.
12. "Journal", pág. 67.
13. Ibid., pág. 53.
14. Ibid., pág. 103.
15. Ibid., pág. 87.
16. Ibid., pág. 131.
17. Ibid., pág. 168.
18. Ibid., pág. 240.
19. Ibid., pág. 241.
20. Ibid., pág. 201-202.
21. Lawrence Stone, "The Road to Divorce - England 1530-1987" (Oxford, 1990), págs. 143-148.
22. Vide Nicolas Contat, "Anecdotes Typographiques O— l'On Voit la Description des Co–tumes, Moeurs et Usages Singuliers des Compagnons Imprimeurs", ed. Giles Barber (Oxford, 1980), e Robert Darnton, "The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History" (Nova York, 1984), cap. 2.
23. "Journal", pág. 198.
24. Ibid., págs. 215-216.
25. A expressão pode ser traduzida como igualdade no gozo das boas coisas da vida, exceto pelo fato de que "jouissance" também sugere prazer sexual, particularmente orgasmo. Para um discussão aprofundada da ideologia sans-culotte, vide Albert Soboul, "Les Sans-culottes Parisiens En l'An II" (Paris, 1958). Para uma abordagem mais estritamente freudiana da fraternidade revolucionária, vide Lynn Hunt, "The Family Romance of the French Revolution" (Berkeley, 1992).
26. Para discussões exemplares desses temas, que parecem preocupar mais os antropólogos do que os historiadores, vide James Clifford e George E. Marcus, "Writing Culture - The Poetics and Politics of Ethnography" (Berkeley, 1986); James Clifford, "The Predicament of Culture - Twentieth-Century Ethnography and Art" (Cambridge, Mass., 1988); James Boon, "Other Tribes, Other Scribes: Symbolic Anthropology in the Comparative Study of Cultures, Histories, Religions, and Texts" (Cambridge, Mass., 1982); Renato Rosaldo, "Culture and Truth: The Remaking of Social Analysis" (Boston, 1989); Clifford Geertz, "Works and Lives - The Anthropologist as Author" (Stanford, 1988); e Clifford Geertz, "After the Fact - Two Centuries, Four Decades, One Anthropologist" (Cambridge, Mass., 1995).
27. Rousseau, "Les Confessions" (Classiques Garnier Edition, Paris, 1964), pág. 380.
28. Ibid., págs. 420-421.

Tradução de João José Reis e Lígia Bellini.

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