São Paulo, quarta-feira, 9 de julho de 1997
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Cabelos viram bandeira em Hong Kong

GILSON SCHWARTZ,

GILSON SCHWARTZ
em Hong Kong
Hong Kong está enfeitada com as bandeiras da China e do seu novo território, ex-colônia britânica. Ponto alto das cerimônias marciais, as trocas de bandeiras foram o ritual em torno do qual giraram os tratados, os jantares, os fogos de artifício e as bandas militares. Arriar ou hastear, eis a questão.
Não para Wenda Gu. No quinto andar do antigo edifício do Banco da China, penduradas no estreito corredor da galeria do senhor Chang Tsong-zung, há bandeiras que não tremulam, apenas jazem, tecidas de cabelos humanos.
Penduradas por fios de náilon, do lado esquerdo está uma enorme bandeira inglesa, em preto-e-branco, feita de cabelos ingleses. Ao seu lado, nem hasteada nem arriada, apenas depositada apesar de suspensa, feita de cabelos chineses, há uma outra bandeira, um grande mural composto de falsos ideogramas chineses. Em meio às cerimônias da devolução, um momento de devoção.
A instalação de Wenda Gu estava prevista para o centenário da Bienal de Veneza. Foi cancelada por ser grande demais. Houve ainda outra exposição programada na Polônia, também com cabelos humanos depositados sobre camas de hospital. Durou um dia, tamanho o incômodo provocado nas autoridades locais, tão próximas a antigos campos de concentração.
O senhor Chang não troca o tradicional camisão chinês por nada, marchand de valores chineses em pontos de mutação. Foi o curador de Qiu Shi-hua na 23ª Bienal Internacional de São Paulo (aquele dos vazios desérticos e insustentáveis, quase transparentes). Seus chineses contemporâneos, diz, ainda não foram devidamente reconhecidos, mas aumenta o espaço internacional para uma arte que, em Pequim, está proibida, mas em Hong Kong ainda se impõe.
O corpo da escrita de Wenda Gu confunde-se com os restos de corpos que desaparecem anônimos na grande festa revolucionária das bandeiras que se sucedem. Há uma escrita tântrica e o pincel, afinal, nada mais é que um punhado de cabelos ou pêlos condensados.
Pintar com pêlos e cabelos o tema das bandeiras em Hong Kong é como um alerta para a fragilidade substantiva de todo esse poder que desfila na propaganda oficial.
As bandeiras e a falsa caligrafia de Wenda Gu são uma crítica ao poder que faz uso das bandeiras e do discurso para simular uma identidade nacional-socialista que, na realidade, é falsa. A nova China ainda busca sua identidade.
A acumulação nazista de resíduos humanos não é acidental.
Tung Chee-hwa e Jiang Zemin celebraram o anúncio em chinês do novo poder local. Há um nacionalismo da década de 50, uma estética da década de 40 e um desenvolvimentismo da década de 30 que se combinam para celebrar a reunificação em torno de uma nação que, nos anos 90, vai escapando aos poucos à moldura imposta pela nomenclatura.
Ao fazer bandeiras com cabelos ingleses e falsos ideogramas com cabelos chineses, Wenda Gu anula a repetição propagandística de uma nova era que nada tem de nova, seja na bandeira, seja no discurso. O senhor Chang disse que ficou emocionado com a cerimônia de troca de bandeiras.
Ele desembrulha um quadro de Qiu Shi-hua, coloca-o sobre um pedestal e se afasta. "Ele viveu muito tempo nos desertos do nordeste da China", comenta.
Ao seu lado, no chão, Kith Tsang fotografa uma pequena instalação. Marionetes de 30 centímetros alinham-se numa procissão que termina aos pés de um tablado, sobre o qual posta-se um casal imperial.
São restos das instalação "Hello! Hong Kong", da exposição "Revertendo Horizontes", que terminou na véspera da devolução.
A galeria do senhor Chang é um pequeno laboratório onde a identidade chinesa vai sendo dissecada. Os ideogramas são falsos, os cabelos são verdadeiros. Há um conflito insuportável entre o meio e a mensagem e pode-se morrer por causa disso. Restos humanos viram bandeira em Hong Kong, mas na realidade são as bandeiras que se alimentam de vidas até que não restem mais que resíduos antropofágicos.

Exposição: The Mythos of Lost Dynasties, 1984-1997
Artista: Wenda Gu
Onde: Hanart T Z Gallery, Hong Kong
Quando: até 25 de julho de 1997

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