São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 1997
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Da vã filosofia

MOACYR SCLIAR

- Doutor, eu gostaria de combinar alguma coisa sobre o tratamento. Por exemplo, acerca da duração da sessão...
- O que é o tempo? O que é o relógio? Diga-me, o que é o relógio? Como afirmou Sartre em "O Ser e o Nada", uma vez que eu descubro que devo esperar por mim mesmo no futuro, sou eu quem dá sentido ao relógio. Emerjo sozinho e em angústia, confrontando esse único e original projeto que constitui o meu ser. Eu não tenho nem posso ter nenhum argumento contra o fato de que sou eu quem sustenta os valores em ser. Nada pode proteger-me de mim mesmo seccionado do mundo e de minha essência por esse nada que eu sou.
- Bem, mas precisamos de algum tempo para falar...
- Falar? Falar, diz o senhor? Permita-me lembrar o que disse Martin Heidegger em "O Ser e o Nada" -note, não é a mesma obra de Sartre, aquela era "O Ser e o Tempo", essa é "O Ser e o Nada". O tempo passou a ser nada, percebe? Mas eu citava Heidegger: precisamos evitar o despudorado misticismo da palavra, ainda que o objetivo último da filosofia seja preservar a força das mais elementares palavras pelas quais o Dasein se expressa, evitando que o entendimento comum as reduza àquela ininteligibilidade que funciona como fonte de pseudo-problemas. Entendeu?
- Bem, na verdade...
- A verdade? A verdade, disse o senhor? Mas de que verdade o senhor está falando? Da verdade objetiva ou da verdade subjetiva? De objetivismo ou de subjetivismo? Porque, se como disse Kierkegaard, subjetivismo é a verdade, o relato conceitual da verdade deve incluir uma expressão da antítese a objetividade. Vamos incluir tal expressão, sim ou não? Isso é o que temos de ver.
- Pelo que estou entendendo, devo raciocinar, com George Berkeley, que ser é percepção, que nada pode existir fora das mentes que percebe os objetos materiais -é isso?
- Um momentinho. Nada existe? Não é bem assim. Os honorários existem, sim senhor. E isso é o que temos de combinar agora. Como o senhor sabe, a filosofia jamais teve por objetivo estabelecer tabelas de honorários. Com o divã, essa lacuna está sendo sanada. Sugiro, portanto, que dediquemos a próxima hora a combinar o pagamento. Que deverá, naturalmente, incluir o preço desta hora. Parafraseando Descartes, que disse, penso, logo existo, afirmo ao senhor: penso, logo cobro.

O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às quintas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

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