São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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A livre invenção de Einstein

PABLO RUBÉN MARICONDA

O mais recente livro de Michel Paty é uma pequena e valiosa obra de divulgação sobre Einstein. Logo de início o autor deixa claro que a singularidade de seu ponto de vista, ao arrepio da crítica culturalista dominante, consiste em considerar a ciência como um duplo trabalho de pensamento: por um lado, ao operar conceitualmente, a ciência pensa e, assim, aproxima-se da filosofia enquanto conhecimento que se interroga sobre suas condições de possibilidade, colocando em jogo suas próprias significações; por outro, a ciência é "trabalho criativo do pensamento", criação e apropriação da novidade e, desse modo, se aproxima da poesia e da arte.
Dessa perspectiva, ressaltam dois aspectos centrais da obra de Einstein: o constante esforço para atribuir inteligibilidade ao mundo e o caráter paulatino e construtivo da representação do mundo. Este é o propósito central do livro de Paty: seguir as linhas mestras da obra de Einstein, considerando seu trabalho científico como "pensamento" e como "criação".
A obra de Einstein é então dividida numa primeira etapa científica criativa (1905-1925) e numa segunda etapa interpretativa e crítica, de caráter mais prospectivo e epistemológico (1926-1955).
Por sua vez, o trabalho científico criativo de Einstein desdobra-se em três direções. Na primeira, apresentam-se suas primeiras criações científicas, todas publicadas no "anno mirabilis" de 1905, concernentes à realidade dos átomos, à quantificação da energia de radiação e à teoria da relatividade restrita. Esta última desenvolveu-se a partir de um conflito entre o princípio da relatividade galileana e o princípio da constância da velocidade da luz, levando Einstein a construir uma nova cinemática do espaço-tempo.
Numa segunda direção, o trabalho científico de Einstein, visto agora como fruto de uma reflexão crítica acerca das grandezas físicas e das concepções gerais que as condicionam (a equivalência entre massa inercial e massa gravitacional, traduzida na "ausência de peso daquilo que cai"), volta-se para as formas matemáticas (tensor métrico, geometrias não-euclidianas, curvatura do espaço), gerando a relatividade geral ou a teoria relativista da gravitação.
Finalmente, a terceira direção é aquela que, investigando a natureza da luz, propõe em 1916 uma formulação sintética dos resultados fundamentais até então obtidos acerca dos átomos e da radiação. Einstein impõe a esses resultados a "regra dos quanta", chegando assim à formulação da "primeira teoria quântica", que servirá como ponto de partida para todas as elaborações subsequentes que conduziram à mecânica ondulatória e à mecânica quântica (segunda teoria quântica).
Inicia-se a partir de então -por volta de 1925- a segunda etapa do trabalho científico de Einstein, caracterizada por Paty como interpretativa e crítica, mas que se desdobra numa dupla perspectiva: científica e filosófica. O objetivo da análise é mostrar que a vertente científica não representa na verdade um afastamento do estilo de reflexão teórica praticado por Einstein na etapa anterior, como poderia parecer, uma vez que ele se afasta das correntes dominantes, orientadas sobretudo para o desenvolvimento da física quântica. Assim, do ponto de vista científico, Einstein empreende sua pesquisa teórica em duas perspectivas abertas pela relatividade geral: a cosmologia relativista, tendo em conta a expansão do universo e procurando estabelecer os tipos de solução em função da densidade de massa, e a extensão da teoria relativista da gravitação ao eletromagnetismo, pela pesquisa de uma teoria do campo unificado.
A seguir, Paty examina as "contribuições críticas" de Einstein à mecânica quântica, que acompanham suas objeções à interpretação "ortodoxa" da Escola de Copenhague, e a recusa de Einstein em renunciar à possibilidade de uma teoria física descrever uma "realidade física" independente dos atos de observação e de medida. A ciência, para Einstein, deve procurar uma representação do mundo que satisfaça uma dupla exigência de inteligibilidade e de completude teórica. Nessa elaboração teórica e conceitual pela qual o mundo se torna inteligível, o projeto é procurar conhecer a "verdade" sobre a "realidade", afirmar a capacidade do pensamento de fornecer uma representação "verdadeira" do mundo (embora provisória), que não seja ilusória ou precária, mas "expressão de uma necessidade interior".
Na construção dessa representação do mundo, Einstein afasta-se da concepção indutivista do conhecimento, para afirmar plenamente a capacidade de livre invenção do espírito humano. Tanto os conceitos como os princípios, que constituem a imagem científica do mundo, são caudatários de dois aspectos essenciais: de um lado, originam-se na experiência, mas, de outro, são construídos livremente pelo pensamento. Numa tal concepção do trabalho criador, a intuição tem evidentemente um lugar central. Para Einstein, "a experiência do conhecimento é ao mesmo tempo aquela da aquisição da intuição (a intuição científica, que ele chama também seu 'instinto científico')". A intuição como "o resultado das experiências intelectuais anteriormente acumuladas" está assim no centro do processo objetivador do conhecimento.
Ao final, o leitor pode entender como a concepção de ciência de Einstein aproxima-a da arte e da filosofia. Da arte, como impulso criador de livre invenção que faz intervir a intuição; da filosofia, no reconhecimento da exterioridade e inteligibilidade próprias do mundo. Em ambos os casos, é conhecimento que se coloca eticamente diante do mundo para entendê-lo e não para manipulá-lo. "A concepção do conhecimento como ética é, para Einstein como para Spinoza, aquela de uma orientação que tende inteiramente para o ser (a natureza, o mundo) e suas razões".
O pequeno livro de Michel Paty é, sem dúvida, uma competente aula de divulgação científica que contribui decisivamente para o discernimento da dimensão intelectual e cultural da ciência.

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