São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Múltiplas identidades africanas

ANTONIO SÉRGIO GUIMARÃES

A África imaginada no Velho e no Novo Mundo, por brancos e negros, indiferentemente, pressupõe a idéia biológica de raça e ignora acintosamente a variedade cultural, étnica e nacional da África dos africanos. "Na casa de meu pai", diz o texto bíblico, "há muitas moradas". Kwame Anthony vai buscar nos ensinamentos de seu pai o modelo de um homem que soube cultivar suas múltiplas identidades.
A principal preocupação de Appiah é com as consequências limitadoras, para brancos e negros, engendradas pelo grande equívoco científico do século passado, a saber, a noção de "raça" compreendida como conceito biológico. Em seu ensaio de abertura, "A Invenção da África", diferencia três atitudes doutrinárias decorrentes do conceito de "raça": o "racialismo", que prega a existência de raças humanas com aptidões morais e intelectuais diversas; o "racismo extrínseco", que prega a existência de uma hierarquia dos valores morais e das aptidões intelectuais das raças; e o "racismo intrínseco", que prega a maior afinidade intelectual e moral entre membros de uma mesma raça.
Radicalmente universalista, não resta dúvida de que, para ele, todas essas atitudes e doutrinas são "racistas". Conclusão que não me parece correta, posto que não acredito que o racismo possa ser concebido apenas como uma atitude moral, ou seja, como sendo tão-somente um tratamento desigual de pessoas baseado na idéia de raça; ao contrário, acredito, como tantos outros, que o racismo pressupõe sempre relações de dominação e exploração entre discriminadores e discriminados.
Aliás, é para dar conta desta verdade fundamental que, em seus escritos mais recentes, Appiah distingue "raça", enquanto conceito biológico, de "identidade racial", enquanto realidade social e psicológica. Ele continua nos devendo, todavia, um conceito propriamente sociológico de "raça". Em nenhum momento considera explicitamente a possibilidade de que, no contexto histórico de nossas sociedades pós-escravistas, a idéia de raça seja conceitualmente relevante para as ciências sociais explicarem certos comportamentos discriminatórios, principalmente quando tais comportamentos se escondem sob um discurso universalista e aparentemente a-racialista, como o discurso da cor, por exemplo. Entretanto, não há como negar que ganhamos em português uma excelente discussão sobre a falácia racial na biologia. E, como grande parte do racismo atual ainda vive desta falácia, todo elogio seria pouco.
Tendo recusado a idéia biológica de raça para explicar o que é ser africano, Appiah irá buscar no contexto histórico e social pós-colonial e pós-moderno (para o Ocidente) o projeto de modernidade que pode unificar o ser africano, apesar das diferenças culturais, étnicas e nacionais ao sul do Saara.
Por onde se constrói a modernidade africana? Primeiramente, nos diz Appiah, pela recriação de algumas línguas européias (o inglês, o francês e o português) que, ultrapassando a enorme diversidade linguística presente no continente, veiculem um projeto pan-africano universalista e moderno, que saiba respeitar a diversidade das culturas da África. Tal recriação só pode se dar na literatura, onde, por exemplo, um escritor como Soyinka, estaria, na prática literária, criando a África real, para além das diversas tradições étnicas. "Ao gerar a categoria do indivíduo no novo mundo do texto público -publicado-, ao criar a 'interioridade metafísica' privada do autor, essa situação sócio-histórica arranca o escritor de sua perspectiva sócio-histórica; o 'eu' autoral luta para desalojar o 'nós' da narrativa oral." Esta luta constante para superar as tradições que os embebem a todos, sem ignorá-las, desprezá-las ou romantizá-las, é justamente o que parece fazer "africanos" os homens e mulheres da África que se exprimem em línguas européias e dominam a herança cultural do Ocidente.
Em segundo lugar, a modernidade significa criar uma reflexão inovadora na filosofia, a partir de uma postura necessariamente comparativa e crítica das idéias ocidentais. Tal postura comparativa e crítica leva, por exemplo, o filósofo ganês Wiredu à constatação de que "o que há de característico no pensamento tradicional africano é ele ser tradicional; não há nele nada de especialmente africano". Para Appiah, que concorda com Wiredu, o filósofo africano está inelutavelmente engajado num projeto de modernização e de racionalização da cultura. A África deve nos induzir, assim, à necessidade de examinar melhor o tradicional e o moderno.
Appiah, seguindo tal trilha, envereda, num de seus ensaios, por uma crítica da teoria da religião como sistema de símbolos, para argumentar uma tese muito simples: "A presença do simbolismo no cerimonial religioso decorre de sua natureza de cerimonial, e não de sua natureza religiosa". O simbolismo na religião achanti e, por extensão, em outras religiões africanas seria, para Appiah, produto do caráter cerimonioso das relações interpessoais nas culturas tradicionais em geral. Nelas, a relação entre humanos e divindade refletiria apenas as relações cerimoniosas entre os humanos. Ao contrário, seria no Ocidente, onde o progresso da ciência, o individualismo e a diversificação da sociedade reduziram o cerimonialismo, que a antiga literalidade do discurso religioso se transforma em puro simbolismo.
A crítica de Appiah às teorias sociológicas e antropológicas da religião têm um alvo explícito: "A menos que todos compreendamos uns aos outros, e nos compreendamos como racionais, não trataremos uns aos outros com o respeito apropriado. A concentração nos aspectos não-cognitivos das religiões tradicionais não apenas dá uma falsa imagem delas, como leva também a subestimar o papel da razão na vida das culturas tradicionais". Uma razão equivocada, para Appiah, já que afirma uma ontologia de seres invisíveis. "Se a modernização é concebida, em parte, como a aceitação da ciência, temos que resolver se achamos que as provas nos obrigam a abandonar a ontologia invisível."
Em terceiro lugar, Appiah faz a crítica da teoria da modernidade dos ocidentais, mais precisamente da idéia weberiana de modernidade como processo crescente de racionalização e secularização do mundo. Uma "concepção radicalmente pós-weberiana da modernidade", segundo Appiah, afirmará que o processo não foi marcado por uma racionalização, mas sim por uma "mercadologização" do mundo, que transformou inclusive as religiões em mercadorias, expandindo a sua difusão e universalizando-as todas. A batalha de Appiah para transcender a tradição, aquela que acoberta o arbítrio, a injustiça e a truculência, equivale a desmascarar também o que existe de míope na assunção e na invenção de novas tradições e novas identidades. Os dois últimos capítulos de seu livro, "Estados Alterados" e "Identidades Africanas", são utilizados justamente para traçar o que é má tradição, tanto no Ocidente, quanto no sul do Saara, pois, segundo Appiah, se não podemos viver sem identidades imaginadas, que ao menos vivamos com a razão.
Finalmente, no epílogo, Appiah nos transporta do discurso teórico para a narrativa pessoal, no melhor estilo dos escritos pós-modernos. A disputa em torno do funeral do seu pai, chefe de importante clã da família real achanti, episódio dolorosamente vivenciado por Appiah, quer nos ensinar que, afinal, as tradições e as identidades, muito frequentemente, estão a serviço de empresas que procuram anular a liberdade e a vontade individuais. Como individualista e liberal assumido, o grande projeto de Appiah está justamente em superar dois grandes perigos que se colocam para os afro-descendentes: primeiro, que se desenvolva e consolide um "racismo anti-racista", para empregar a expressão sartriana, que não seja suplantado na dialética de emancipação dos povos negros; segundo, que as identidades raciais acabem por minguar outras fontes de identidade dos negros, enquanto indivíduos, e, portanto, limitar a solidariedade com os outros.

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães é professor do departamento de sociologia na USP.

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