São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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O arquiinimigo de Platão

FRANKLIN DE MATOS

É lugar-comum dizer que Platão foi um grande prosador e que seus diálogos permanecem obras-primas do gênero. Outro lugar-comum é lembrar que esses diálogos mostram seu talento como dramaturgo, sua imaginação poética e familiaridade com as técnicas do pintor, do escultor etc. Donde a pergunta, por onde começa E. Havelock: sendo tão próximo daquilo que chamamos "belas-artes" e "belas-letras", como pôde Platão, no Livro 1Oº da "República", banir a poesia da cidade ideal?
Segundo Havelock, para compreender essa condenação é preciso resistir a duas tentações: 1) deixar-se levar pelo título consagrado e achar que a "República" é um livro de filosofia política. Na verdade, o tema do diálogo é a questão da educação necessária para a realização da justiça; 2) é preciso renunciar à pretensão de "salvar Platão das consequências do que ele pode estar dizendo", ou seja, de relativizar sua severidade. Se não admitirmos de vez e sem rodeios que ele "ataca exatamente a forma e a essência do discurso poético" -e não apenas os maus poetas ou as peças demasiado realistas, por exemplo-, jamais seremos capazes de compreender do que trata o último livro da "República".
Tomadas tais precauções, é preciso esclarecer "a mais instável das palavras do vocabulário filosófico" de Platão, mediante a qual define a poesia como "techné": a "mimesis".
Inicialmente, no Livro 3º, a "mimesis" é identificada a um certo estilo, o dramático, por oposição à "narrativa simples": neste sentido, a tragédia e a comédia são "miméticas", o ditirambo é puramente narrativo, e a epopéia um estilo "misto", que usa as duas formas anteriores.
No Livro 10º, porém, Platão se mostra completamente desinteressado em distinguir a forma épica e a dramática e, por meio do mesmo termo, passa a designar a poesia como um todo, referindo-se indistintamente a Homero e aos poetas trágicos. Seja um grupo de objetos múltiplos aos quais costumamos dar o mesmo nome -por exemplo, camas ou mesas: a esses objetos corresponde apenas um "eidos" ou "idea", uma cama ou mesa "em si". Esta "forma natural" -da qual Deus é o autor- é aquilo que o carpinteiro copia ao fabricar as camas ou mesas das quais nos servimos. Sejam agora as produções de outro artesão, o pintor: ao fabricar sua imagem de cama, ele não toma por modelo a "idéia" desse objeto, mas as camas "particulares", mostrando-as, aliás, não como são, mas como "parecem" ser.
Há, portanto, três ordens de coisas: "a essência da cama", da qual Deus é o "criador", "a cama particular", da qual o carpinteiro é o "obreiro", e a cama do pintor -segundo Platão, "um objeto aparente, sem nenhuma realidade". Pois bem, não se pode dizer que o pintor seja o "obreiro" ou o "produtor" desta espécie de cama; ele é antes seu "imitador", quer dizer: "o autor de um produto afastado da natureza em três graus" ("República", 10, 597e). A "mimesis" se define, assim, por uma certa distância em relação ao verdadeiro e, se é capaz de modelar todos os objetos, é porque só toca numa pequena parte de cada um, parte que é, aliás, apenas "um fantasma". O pintor pinta, por exemplo, um artesão qualquer sem nada conhecer de seu ofício, mas, se for bom, dará à sua obra "a aparência" do artesão verdadeiro, iludindo, assim, crianças e ignorantes. Do mesmo modo, o poeta é apenas um "obreiro de imagens", um "criador de fantasmas" e, por isso mesmo, parece deter uma espécie de saber universal. Alguns não pretendem, de fato, que Homero e os trágicos fossem versados em todas as artes, em todas as coisas humanas que se reportam ao vício e à virtude, e mesmo nas coisas divinas?
Estas as acepções mais visíveis do termo "mimesis", mas Havelock identifica ainda outros momentos em que é empregado. No mesmo Livro 3º, Platão aplica a palavra para falar da atividade de um ator ou recitador, que não cria o poema, mas o repete: "imitar", agora, significa "identificar-se" a um original, atirar-se a um papel frente ao público. Linhas à frente, faz um uso parecido ao referir-se à educação dos guardiães da cidade: devem eles "ser hábeis na imitação?", pergunta Sócrates a seu interlocutor. Certamente, diz Havelock, aqui o guardião não está sendo visto como poeta ou ator, sequer como espectador, mas como "aprendiz" de um ofício ("epideumata") -no caso, de "artífice da liberdade"-, "que absorve e repete lições e, por isso, 'imita' aquilo que lhe mandam dominar profundamente". Na mesma passagem, aliás, inesperadamente "o aluno parece se tornar um homem adulto que, por algum motivo, está incessantemente ocupado em recitar ou declamar poemas que podem envolvê-lo em gêneros inadequados de imitação" (pág. 41). E, finalmente, Platão dá uma última acepção à palavra, para a qual já nos preparara anteriormente: ao examinar o efeito da poesia sobre nossa alma, torna a "mimesis" "o nome da identificação pessoal ativa mediante a qual o público estabelece uma empatia com a representação". Ela passa a ser "o nome da nossa submissão à sedução" (pág. 43).
Esta múltipla significação do termo nos obriga a formular várias perguntas. Por que Platão submete a poesia a critérios, por assim dizer, epistemológicos, estranhos a ela e próprios a desqualificá-la de antemão? Por que, contrariamente a nós, não parece interessado em distinguir a poesia épica e a dramática? Por que a "mimesis" pode ser aplicada para falar de "atos" tão distintos quanto a criação do poeta, a imitação do executante, o aprendizado de um ofício, a recreação do adulto, a identificação do público?
Para a primeira questão a resposta de Havelock não é nova: os critérios aos quais a poesia é submetida podem soar estranhos para quem a considere uma arte produtora de beleza, mas não para os gregos, que a viam como uma espécie de enciclopédia tribal, destinada a perpetuar "nomoi" e "ethea" -aproximadamente, o público e o privado, a lei política e familiar da sociedade helênica. A esta concepção da poesia como "paideia" é preciso, porém, acrescentar outro dado, que esclarece as demais questões e confere originalidade à perspectiva de Havelock: ao falar dos poetas, Platão sempre pensa em algo fundamental na experiência grega da poesia, que a torna eficaz como instrumento educacional -a declamação.
De posse desses dados, Havelock formula uma ousada hipótese, que pretende explicar a função da poesia homérica, a origem da filosofia e a própria mentalidade grega entre Homero e Platão. Segundo ela, embora os gregos conhecessem o alfabeto desde 700 a. C. aproximadamente, mais de três séculos depois, na época de Platão, a forma de conservação e transmissão da cultura permanecia essencialmente oral. Em culturas não-alfabetizadas, a principal tarefa da educação é, por assim dizer, "colocar a comunidade como um todo numa disposição mental formular" e, para isso, o paradigma dos gregos era o poema épico. Mas a memorização da tradição depende de um exercício reiterado de recitação: ao confundir as atividades do poeta, do ator, do aprendiz, a recreação do adulto e a reação do público, a "mimesis" tentaria reter a diversificação daquele exercício.
Havelock examina em detalhe de que modo o enunciado poético depende das exigências da memorização. Para resumir, seu traço mais marcante é o efeito que proporciona no ouvinte: "Um estado de completo envolvimento pessoal e, portanto, de identificação emotiva com a essência do enunciado poetizado que nos exigem guardar na memória".
Posto isto, não é difícil entender por que a "República" é tão drástica para com a poesia. A disposição mental oral constituía um terrível obstáculo aos padrões de racionalidade impostos pelo platonismo (o uso da análise, a classificação da experiência na ordem de causa e efeito) e que dependiam do aperfeiçoamento do alfabeto. A filosofia nascente estava assentada em dois postulados fundamentais: o sujeito, que pensa e conhece, e um corpo de conhecimento, que é pensado e conhecido. Para garanti-los, Platão "precisava destruir o hábito imemorial de auto-identificação com a tradição oral". Portanto, é na poesia que o filósofo está pensando quando denuncia a "doxa" ("opinião"), que reconhece apenas o múltiplo e o visível, o devir e o movimento. Homero -e não os sofistas- é, assim, o "arquiinimigo" de Platão.
A interpretação de Havelock amarra indissoluvelmente a obra de Platão ao texto escrito e sustenta que a origem da filosofia não deve ser pensada como passagem do mito à razão, mas como substituição do oral pelo escrito. A leitura é discutível, sobretudo se estimada mediante os resultados de estudos que enfatizam justamente as "doutrinas não-escritas" do filósofo (ver a resenha abaixo). O "Prefácio" sequer alude aos textos em que Platão faz a defesa do ensino oral: mas não é razoável esperar que sua obra reproduza a mesma tensão entre o escrito e o oral que define a mentalidade grega de seu tempo, segundo Havelock?
De todo modo, é inegável a importância deste livro, publicado em 1963. A meu ver, uma de suas maiores vantagens é contestar a convicção segundo a qual o autor da "República" era um filósofo conservador. Contrariamente ao Platão de Pierre-Maxime Schuhl (1), por exemplo, o de Havelock jamais se submete à tradição, mas a desafia incansavelmente, quer como pensador político, quer como filósofo da arte.

Nota:
1. Ver "Platon et l'Art de Son Temps", Paris, PUF, 1952, 2ª ed..

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