São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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As entranhas de Montaillou

HILARIO FRANCO JUNIOR

Sem dúvida, Emmanuel Le Roy Ladurie possui um curriculum respeitável: professor do Collège de France, diretor da Biblioteca Nacional de Paris, co-diretor da célebre revista "Annales", autor de importantes artigos e livros. Mas seu maior título de glória acadêmica é "Montaillou", livro que recebeu muitos elogios dos estudiosos e ampla aceitação do público, tendo se transformado no maior best seller das ciências humanas, com centenas de milhares de exemplares vendidos na França em poucos meses após seu lançamento em 1975, com traduções em diversas línguas, sempre com sucesso. Por quê?
Em primeiro lugar, devido ao tema. Montaillou é uma pequena aldeia francesa pirenaica, próxima da fronteira espanhola, cuja vida conhecemos em detalhes graças à Inquisição. Depois de uma primeira investigação, em fins do século 13, e de outra em 1308, que redundara no aprisionamento de todos os habitantes de Montaillou maiores de 12 anos, veio o grande inquérito de 1318 a 1324. Conduzido pelo abade cisterciense Jacques Fournier, bispo de Pamiers, depois cardeal e por fim papa sob o nome de Bento 12, tal inquérito gerou centenas de páginas de registro dos interrogatórios dos acusados de heresia cátara. Foi explorando esse rico material, editado desde 1965, porém pouco utilizado pelos historiadores, que Ladurie desnudou a alma da pequena aldeia.
Graças a ele penetramos na intimidade dos 200 ou 250 habitantes de Montaillou. Passamos a conhecer de perto a economia agropastoril da região, baseada em cereais e no gado ovino. Tomamos parte nas frugais refeições daquelas pessoas, constituídas por pão, algumas hortaliças, queijo, carne de porco salgada ou defumada, às vezes peixe e carne de carneiro. O vinho, apesar de apreciado, não era comum por não ser produzido no local, excessivamente frio para isso. Conhecemos as casas daqueles camponeses e pastores, feitas ou de madeira, ou de barro amassado com palha ou de pedra, conforme a condição socioeconômica de cada um, mas sempre estruturadas em torno da cozinha, local onde se comia, se conversava, se convertia à heresia, local onde às vezes se dormia e se morria. Sabemos que nessas casas geralmente viviam famílias alargadas, que além do casal e dos filhos reuniam outros parentes consanguíneos e alguns criados.
Por meio de casamentos, apadrinhamentos e identidade religiosa (cátara ou católica), as famílias de Montaillou formavam complexas redes de alianças. Estas explicam os conflitos pelo poder local, a facilidade de penetração da heresia, o êxito da Inquisição baseado nos afetos e desafetos da aldeia. Uma dessas redes fundamentava o poder dos Clergue, família que contava com pelo menos 22 indivíduos, inclusive o pároco e o representante local do conde de Foix, senhor da região. Família que manipulava o duplo poder, espiritual e temporal, para obter vantagens pessoais, o pároco dormindo com suas paroquianas, o bailio mandando cortar a língua de uma mulher que falara mal do clã. Família simpática à heresia, mas que, para salvar seu poder, não hesitou em apoiar a Inquisição na sua primeira investida. Família rica, que, na tentativa de soltar o padre herético da prisão inquisitorial, gastou o equivalente a 1.400 ovelhas ou 36 casas (note-se que toda a aldeia era formada por umas 40 casas!).
Em segundo lugar, o sucesso de crítica e de público conhecido pelo livro decorre do método utilizado. Ladurie desdobra-se em antropólogo para analisar um objeto tradicional da antropologia, uma sociedade rural na qual as crenças exerceram papel fundamental, e que não deixou nenhum testemunho escrito sobre si mesma. Ele trabalha também como demógrafo, na tentativa de quantificar a população estudada e sobretudo de compreender o comportamento sócio-sexual dos habitantes da aldeia. Aproximando-se do sociólogo, o autor examina as relações interpessoais, intrafamiliares e macrossociais da população de Montaillou. Fazendo-se de geógrafo, ele considera o enquadramento físico que serviu de palco aos seus aldeões. Como historiador das mentalidades, ele busca captar as motivações profundas de seus personagens.
Enfim, como legítimo representante da proposta historiográfica dos "Annales", Ladurie tenta reconstituir a globalidade de seu objeto de estudo. Daí a reconfortante sensação de "realidade" que tem o leitor, não limitado a tomar contato com um fragmento do passado por um viés apenas econômico, ou político, ou religioso etc. "Montaillou" é a biografia de uma pessoa coletiva, cuja vida é descrita na sua ambientação geográfica e doméstica, nas suas atividades econômicas, na sua atuação política, nas suas relações sociais dentro e fora de casa, na sua forma de lidar com o casamento e o sexo, na sua postura diante das diferentes etapas da vida, na sua concepção de tempo e de espaço, nos seus sentimentos diante da pobreza, do trabalho, da magia, da religião, da morte, do mundo do Além.
Em terceiro lugar, a atração exercida por "Montaillou" deve-se à linguagem utilizada pelo autor. O trabalho acadêmico, multidisciplinar, não o impediu de elaborar um texto de leitura fluente. Naturalmente ele foi ajudado pelo tema e pela excepcional documentação que fundamenta seu estudo, porém isso não diminui o mérito de ter sabido analisar e comentar o registro inquisitorial de forma clara e quase sempre rigorosa. As abundantes citações do documento ajudam a sintonizar o leitor com a atmosfera da aldeia pirenaica do século 14. A competente tradução manteve de forma geral as qualidades narrativas do original, apesar de algumas vezes não ter feito a melhor opção: ao longo do livro "village" foi quase sempre traduzida por "aldeia", preferível a "povoado", utilizada contudo no subtítulo do livro; nomes pessoais que possuem correspondentes consagrados em português foram mantidos na forma francesa (Pierre, Jean, Guillaume, Béatrice etc), enquanto referências geográficas receberam aportuguesamentos pouco explicativos e pouco elegantes (o condado Venaissin tornou-se condado Venasco, a região de Foix, região fuxeana, os bispos de Pamiers, bispos apameanos etc.).
Enfim, "Montaillou" é uma grande obra, à qual se podem fazer poucos reparos. No plano do conteúdo, é o caso do "direito da primeira noite" que o pároco Pedro Clergue teria exercido na aldeia herética, quando se sabe atualmente, depois do trabalho de Alain Boureau (1995), que essa instituição foi uma criação historiográfica do século 16, jamais tendo existido na Idade Média. É o caso de "a comunhão frequente não é prática local", afirmação que sugere ter sido característico de Montaillou um fato que se sabe ter sido regra na Europa medieval. É o caso, ainda, de se dizer que "em Montaillou o catarismo foi vivido como uma variante do cristianismo, e não como uma religião não-cristã", o que transmite uma falsa impressão, pois os cátaros de todo o Ocidente, não apenas daquela aldeia, consideravam-se cristãos, os verdadeiros cristãos.
No plano do método, podem-se hoje apontar algumas hesitações conceituais, próprias no entanto ao momento historiográfico em que "Montaillou" foi escrito. Por exemplo, apesar de a palavra aparecer diversas vezes, inclusive no título de um capítulo, "mentalidades" recobre realidades diferentes ao longo do livro. Às vezes corresponde a um sistema de valores, às vezes a uma filosofia de vida. "Inconsciente coletivo" -expressão delicada que assume significados diferentes conforme as correntes psicológicas, antropológicas e historiográficas- aparece duas vezes com sentido vago, ressaltando as fraquezas do termo e sem se beneficiar de suas eventuais possibilidades explicativas.
O comparativismo, recurso sempre útil para preencher lacunas de informação e para se apreender em profundidade o objeto estudado, pressupõe no entanto certos cuidados nem sempre tomados. Um deles, evitar anacronismos: sem ter explicitado, em certas passagens Ladurie insinua semelhanças entre o colaboracionismo de certos cátaros para com a Inquisição e de alguns franceses para com o nazismo, desconsiderando que os contextos e as motivações profundas foram diferentes num e noutro caso. Outra armadilha comparativista, da qual o autor algumas vezes não conseguiu escapar, é a dos juízos de valor: colocando frente a frente o mundo pastoril de Montaillou e a sociedade capitalista, Ladurie revela nostalgia pelo "mundo que perdemos", manifesta sua preferência pela liberdade de horário e pela solidariedade social dos pastores, diante da organização e do individualismo capitalistas.
De qualquer forma, trata-se inegavelmente de uma obra importante. Quase 700 anos depois dos inquisidores, 22 anos depois dos leitores franceses, agora também o público brasileiro tem acesso às intimidades, às entranhas, da pequena aldeia de Montaillou. Sorte nossa.

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