São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
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Márcio Souza remexe história esquecida

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REDAÇÃO

Márcio Souza disse certa vez que, sempre que trabalha em um livro de fundo histórico, jura que é o último que vai fazer.
Mas o autor de "Galvez, o Imperador do Acre", livro que de "besta-célebre" virou best seller, segue a seu modo uma frase de Stendhal (1788-1842): "Parece-me, aliás, que todas as vezes que se avança 200 léguas do sul para o norte, isso dá ensejo tanto a uma nova paisagem como a um novo romance".
Caminhando durante 10 anos por léguas e léguas de bibliotecas, onde por sinal pesquisava a história do norte do país -Souza é amazonense-, acabou se deparando não com um, mas com quatro romances históricos.
O primeiro, "Lealdade", foi lançado nesta semana em São Paulo. Os próximos volumes da tetralogia "Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro" -que se passa no "stendheliano" período de 1789 a 1845- ainda não passaram da cabeça ao papel.
Nessa entrevista à Folha, o escritor falou sobre "Lealdade" e seu esquecido cenário histórico, época em que Portugal tinha duas colônias: a Capitania do Grão-Pará e Rio Negro -hoje a região norte do Brasil- e o Vice-Reino do Brasil.
Souza também adiantou projetos da Funarte -órgão que ele preside e chama de "Frankenstein cultural"- e discutiu o mercado editorial brasileiro -ele foi o fundador da editora Marco Zero-, sem deixar escapar pontadas contra a política pública de livros.
*
Folha - Por que "Lealdade"?
Márcio Souza - Talvez a explicação mais simples seja dada pelo próprio narrador, o militar Fernando Simões Correia. Em algum momento do livro, ele confessa que sua vida havia sido talhada para ser um bom súdito português.
Quando ele vai para Portugal estudar, descobre que é muito diferente dos lisboetas.
Em um determinado momento, passa a se identificar como um cidadão do Grão-Pará.
Lealdade a quem? Ao rei de Portugal, ao Grão-Pará, ao imperador do Brasil, ou a ele mesmo. Quem era ele mesmo?
Folha - O que encontrou de mais interessante nas pesquisas para "Lealdade"?
Souza - O que mais me impressionou foi ver o modo como a sociedade do Grão-Pará e Rio Negro se organizava, de uma forma muito particular, bem diferente do Reino do Brasil.
Embora fossem colonizadas na mesma língua e pelo mesmo colonizador, as duas tinham diferenças não apenas regionais, mas modos diferentes de ver o mundo, desde a estrutura econômica.
Em um momento do século 18, de todas as colônias portuguesas do mundo, a única que tinha quase toda a sua economia baseada na indústria era o Grão-Pará.
Folha - E quais foram os frutos culturais dessa sociedade industrial?
Souza - Não foram muitos. Como é que haveria em uma sociedade colonial tão repressiva quanto a portuguesa? Aqui não havia universidades, não tínhamos imprensa -no final do século 18, com a Revolução Francesa, quem fosse pego com um exemplar da "Declaração dos Direitos do Homem" no Grão-Pará recebia pena de morte sem apelação- nem livros -os primeiros só foram impressos depois da chegada da corte.
Folha - Como você enxerga o mercado editorial hoje?
Souza - O ajuste com a estabilização da economia não foi fácil. Ainda vamos ter algumas surpresas pela frente. Mas existem fatores que são indicativos de que a coisa vai mudar, favorecendo os leitores, os editores, os autores...
Folha - Por exemplo?
Souza - As mudanças de atitude com relação às livrarias. Nos ramos industriais, o setor mais conservador é o comércio. A abertura das "megastores" representa uma oxigenação do mercado.
Folha - E as editoras, não são conservadoras?
Souza - Com certeza, mas, aos poucos, elas estão percebendo a questão do preço do livro. Antes, para manter viva a editora, eram necessários muitos lançamentos.
Com a crise econômica do setor, todas as grandes distribuidoras ruíram. Hoje não existe uma estrutura de distribuição no país. Em um país continental como o Brasil isso complica, você tem que trabalhar com as livrarias.
Folha - O que você fez para favorecer o mercado editorial quando esteve à frente do Departamento Nacional do Livro?
Souza - Tentei implantar uma política de aquisição de livros para bibliotecas públicas. Mas foi muito incipiente. Chegou a 0,2% da indústria editorial, enquanto o governo norte-americano compra 30% do mercado para bibliotecas públicas.
O livro anda com duas pernas, que são livraria -ou comercialização- e biblioteca. Aqui, você não tem uma delas, que é a biblioteca. E da outra, a comercialização, ainda tiraram um pedaço. A indústria editorial só pode extrapolar a fase primitiva quando você tem no mínimo essa contrapartida do governo.
Infelizmente essa mentalidade ainda não existe.
Uma vez um senador me disse: "Eu gosto tanto de bibliotecas que, todas as vezes que eu tenho um livro que não presta em casa, eu mando para a biblioteca da minha cidade". Por que as bibliotecárias não podem comprar diretamente o livro?
Folha - E o que fez com que houvesse uma rejeição tão grande para uma política como essa?
Souza - Em parte, o preconceito. Muitos dizem que se deixarmos a escolha com as bibliotecárias da Bahia, por exemplo, elas iriam comprar um monte de livros de candomblé. E qual é o problema disso?
Folha - E como estão os projetos que você desenvolve na Funarte?
Souza - O grande problema é que a Funarte é gigantesca. É uma espécie de "Frankenstein cultural", só que não aquele gigante forte. A Funarte, criada no período de sandices que foi o governo Collor, foi montada com pedaços de Jeca Tatu e Macunaíma.
O que fizemos nesses anos todos, com apoio do governo, foi aumentar os recursos da cultura.
Seguimos o que Fernando Henrique imaginou. Trabalhar para, no final do mandato dele, chegar com o Ministério da Cultura com 1% do orçamento da União. Quando entramos, a Cultura tinha algo como 0,04%. Já estamos próximos de 1%. Os recursos da Funarte cresceram muito.
Folha - E no que esse dinheiro está sendo aplicado?
Souza - Temos neste ano um programa de difusão da cultura brasileira, em áreas como música clássica, teatro, dança e cinema, artes plásticas e fotografia. Temos um programa que faz com que 500 artistas de teatro e dança circulem por mês pelo país.
Estamos desenvolvendo também, em parceria com os Estados, uma espécie de Prêmio Estímulo. São R$ 2,5 milhões para os grupos de artes cênicas de cada Estado. Com esse recurso, esperamos atingir daqui a algum tempo uns 15 espetáculos de primeira linha que tenhamos participado da produção.
Folha - Entre as dezenas de interesses da Funarte, quais pretende privilegiar?
Souza - Entre novembro e janeiro de 1998, devemos ter uma nova bienal, no Rio de Janeiro, só de artes brasileiras. Essa exposição deve ter como núcleo os antigos salões de artes. Serão mantidos esquemas de inscrições e curadorias, mas serão criadas curadorias específicas para que a mostra volte a ser uma grande passada sobre o que são as artes no Brasil.
Ao mesmo tempo, teremos uma jornada de fotografia e uma bienal de música contemporânea brasileira, que se integra à de artes.
Esse ciclo, que começa junto à exposição artística, dura 12 dias. Juntando todos esses programas, e ainda projetos de teatro e dança, teremos no fim da bienal de música um grande simpósio de crítica de artes no Brasil, com convidados internacionais, na segunda quinzena de novembro deste ano.

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