São Paulo, sábado, 12 de julho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Padre Vieira era de esquerda?

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

Experiência inédita e inesquecível foi participar de um chat do Universo Online, via Internet: sem ter pronunciado uma única palavra, saí rouco, literalmente, a garganta cansada como se tivesse enfrentado ao vivo aquele encantador bando de canibais (o mediador, que também levou uma coça, explicou que é assim -fruto do mix de interatividade e licenciosidade).
Em compensação, entendi a iconoclastia nacional, essa vocação generalizada para a tábula rasa, para vaiar o minuto de silêncio, malhar os judas e tascar balões (não porque sejam perigosos, mas porque são criação alheia).
Percebi por extensão -este é o ponto- a razão de não termos cultivado com afinco, no passado, a biografia, gênero literário que é também uma opção existencial de celebrar o outro, só agora valorizado.
Antes dos anos 80, tivemos biógrafos e bons, Otávio Tarquínio de Souza, Luis Vianna Filho, Eloy Pontes, Gondin da Fonseca, Raimundo Magalhães Jr. e Francisco de Assis Barbosa -para citar os mais insistentes. Mas o nosso biografismo, em geral, foi sempre partidário, os biografados escolhidos para serem louvados ou massacrados.
Pouca nuance, quase nenhuma perplexidade ou perturbação com os imponderáveis da natureza humana. Mais para encômio ou difamação do que para o flagrante.
Chamava-se Lytton Strachey aquele frágil barbudo de "Carrington" (com Emma Thompson) que, no início do século, revolucionou o biografismo inglês ainda impregnado com a fleuma vitoriana por meio de uma coleção de perfis pontilhados de surpresas ("Eminent Victorians").
O seu grupo de Bloomsbury, onde pontificava Virginia Woolf, cultivava esse estilo de "escrever vidas" ("writing lives"), realista e descompromissado (o último rebento do grupo, Quentin Bell, sobrinho de Virginia, foi seu rigoroso biógrafo).
O padre Antonio Vieira morreu em 18 de julho de 1697 aos 89 anos, já então designado "o grande". A próxima sexta-feira é a data redonda do seu tricentenário.
Falou-se menos em Vieira do que em seu companheiro de ordem, José de Anchieta, também jesuíta, "apóstolo do Brasil" e cujo quadricentenário de falecimento (9 de junho) mereceu missa solene na Sé de São Paulo, com a presença do primeiro escalão da República e a promessa de que o governo tudo fará para apressar sua canonização.
Vieira não foi beatificado (ao contrário de Anchieta, sagrado em 1980) e nem sequer reabilitado da infame condenação do Santo Ofício da Inquisição (1663-1667).
Se alguma autoridade eclesiástica o tentar, estará anulando a infalibilidade daquele tribunal e as acusações que pesam sobre a memória dos outros 30 mil desgraçados que só em Portugal, entre 1536 e 1821, passaram pelas suas masmorras.
Indiretamente, invalidará as sucessoras contemporâneas da instituição.
Vieira e Anchieta estão sendo pouco lembrados nesses centenários. Melhor sorte tiveram as efemérides em torno de Franz Schubert, Johannes Brahms e, sobretudo, Che Guevara. O que levou um jornal carioca ("O Globo", Prosa & Verso de 5/7) a ouvir os interessados.
Pauleira pura: um editor acusou o Ministério da Cultura de estar mais preocupado com a literatura cubana do que com nossos ídolos, o ministério retrucou com a mesma insolência, outro empresário explicou que não cabe ao editor mudar o mercado, outro pediu patrocínio das empresas para projetos biográficos (como se Boswell tivesse recorrido aos incentivos fiscais para escrever "A Vida de Samuel Johnson") e, nessa xingação tipo chat, ficamos sabendo que alguma coisa está sendo feita.
É pouco, irrisório, sobretudo no caso do padre Vieira, cujo talento literário, eloquência, cultura bíblica, índole libertária, vocação visionária e militância política o colocam numa posição ímpar na cultura luso-brasileira.
Vieira foi o tribuno da Restauração portuguesa, chegou a cogitar, numa manobra para atrair a França, um reino independente no Brasil sob o cetro de d. João 4º. Sua visão de mundo era lusocentrista, com nosso país de pivô (sua Companhia Geral do Comércio do Brasil foi o nosso primeiro projeto macroeconômico e geopolítico).
Não fosse o quilate literário e uma certa dose de marginalidade, Fernando Pessoa não o designaria "imperador da língua portuguesa" e, no Brasil, não teríamos cunhado a expressão "estalo do Vieira", preito popular à inventiva do tributo poliglota, formado na Bahia, depois exilado no Maranhão amazônico e que em Roma encantou de tal forma a rainha Cristina da Suécia que esta o convidou para sentar-se ao lado de Descartes em sua corte.
Sempre ao lado dos vencidos, quase expulso de sua própria ordem porque insurgiu-se contra alguns privilégios, enfrentou os poderosos dominicanos, donos do aparelho inquisitorial, também no púlpito, desqualificando sua oratória rombuda em dois magníficos sermões (o da Sexagésima e o de Santo Antonio aos Peixes).
Legítimo campeão dos direitos humanos, defendeu os índios, condenou os maus-tratos aos escravos, denunciou o racismo, lutou encarniçadamente contra os procedimentos inquisitoriais, trabalhou para trazer os cristãos-novos de volta a Portugal.
Um estadista com retórica e projetos, muitos. Cada revés acionava a sua criatividade para uma nova empreitada. Quase todos fracassados -um vencido ou vencedor?
Quando recolheu-se ao convento em Salvador, tratou de organizar a obra esparsa, ao que consta o primeiro na literatura portuguesa a fazê-lo de forma sistemática. Mesmo assim, com a mesma fibra, ainda interveio em defesa dos negros fugidos de Palmares e contra os bandeirantes que pretendiam escravizar os índios nas minas de ouro, recém-descobertas.
Morreu quando acabara de redigir o 12º volume dos sermões (ao todo 16, mais um suplemento e a utopia, "História do Futuro", sem falar nas cartas e papéis anônimos).
Essa é um biografia que, como dizia Virginia Woolf, precisa ser refeita a cada geração (a última, de João Lúcio Azevedo, breve completará 80 anos). Hoje, com a ânsia de releituras, revisões e rotulações, Vieira seria visto como social-democrata, precursor da "onda rosa". Esquerdista.
Melhor assim -são garantidas sua integridade, num vale-tudo on-line, e a reconsagração que este tricentenário, até o momento, não lhe deu.

Texto Anterior: Peça recria palhaço modernista
Próximo Texto: Münster se torna museu a céu aberto
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.