São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Aos 11 meses, deu a primeira tacada Aos 21 anos, tirou o golfe do buraco

MELCHIADES FILHO
ENVIADO ESPECIAL AOS EUA

Aos 11 meses, deu a primeira tacada
Aos 21 anos, tirou o golfe do buraco
Filho da Guerra do Vietnã, o norte-americano Tiger Woods mistura a calma do budismo à tacada mais forte da história dos campos de grama para revolucionar um esporte elitista, arrastar legião de fãs, bater recordes de patrocínio e se consagrar como o principal atleta da virada do século
Você já se imaginou grudado na televisão durante quatro, cinco, seis horas, enquanto locutores suspiram expressões como "tee", "drive", "birdie" e "putt"?
Vá se acostumando. Pois o planeta suspendeu os bocejos e parou para cumprimentar o golfe.
Um garoto de 21 anos, asiático-negro-índio, budista, solteiro, gatinho e milionário é o grande responsável pela revolução.
Os marketeiros apontam-no como o super-herói esportivo do ano 2000, o sucessor de Michael Jordan no trono da popularidade.
Eldrick Woods, claro, também é um gênio das tacadas. Em apenas dez meses como profissional, to mou a ponta do ranking mundial, dizimando recorde após recorde.
Seu apelido, Tiger, como você ficará conhecendo-o, veio da Guerra do Vietnã -uma homenagem do pai, Earl, ao amigo Nguyen Phong, um sul-vietnamita que morreu lutando ao lado das tropas norte-americanas.
Tiger Woods nasceu em 30 de dezembro de 1975 em Long Beach, Califórnia, filho de um tenente-coronel com uma secretária.
Sua trajetória nos campos de grama começou antes mesmo do gu-gu-da-dá, graças à obsessão do pai, um fanático pelo golfe.
Earl Woods logo percebeu a facilidade do bebê em se equilibrar -aos 6 meses, ficava em pé sem ajuda- e resolveu explorá-la. "Foi como se Deus tivesse dito: quero que esse filho da puta treine bastante e seja o maior", diz. Encomendou um miniprotótipo de taco e o entregou ao filho.
Aos 11 meses, Tiger golpeava bolinhas. Aos 18, ainda nas fraldas, praticava em campos oficiais.
Não demorou para que a mídia apontasse as antenas para o prodígio. Tiger tinha 3 anos quando exibiu-se, ao vivo, na TV.
No ano seguinte, passou a torrar sábados e domingos, das 9h às 17h, em clubes de golfe, treinando e ganhando apostas com adultos. Antes de completar 10 anos, estava rodeado por um pelotão de assessores -dois instrutores técnicos, um médico, um agente e um advogado. Jamais teve uma babá.
"O golfe sempre foi elitista. Precisa de um porta-voz para as massas. Parece que sou a pessoa."
O racismo bateu à porta de Tiger, antes mesmo do nascimento.
Kultida estava grávida, arrumando caixas de mudança, quando sua nova casa foi bombardeada com limões pelos vizinhos, inconformados com a chegada da família negro-asiática ao bairro, em Cypress, Califórnia.
Aos 5 anos, quando já despontava para o estrelato, Tiger foi amarrado pelos colegas de jardim-de-infância a uma árvore. Levou pedradas, foi xingado de "macaco" e "crioulo".
Apesar da fama conquistada em programas da TV, o menino foi recusado duas vezes no campo de golfe do bairro, propriedade da Marinha -mesmo após derrotar o melhor jogador do clube, num desafio/aposta lançado por Earl.
Hoje super-herói, Tiger devolve os preconceitos com uma certa esquizofrenia.
Foge do confronto -"não sou negro", chegou a dizer em abril.
Mas não hesitou em usar comercialmente sua revolta no primeiro comercial de TV que gravou para a Nike -"ainda há campos de golfe que não permitem que eu jogue por causa da cor de minha pele".
Os pais do golfista colorem ainda mais a questão -revestem-na de messianismo.
"Ele reúne todos os sangues, é a criança universal", afirma Tida, 52, filha de europeu e tailandesa.
"Ele vai mudar o curso da humanidade. É mais preparado, educado e carismático do que outras legendas do esporte, como Muhammad Ali e Arthur Ashe. E fala para um fórum mais amplo do que Buda, Mandela ou Gandhi", discursa Earl, 65, descendente de negros, chineses e índios cherokees.
O esporte é um dos meios mais preconceituosos nos EUA.
Os negros respondem por 13% da população do país, mas representam 5% dos compradores de ingressos para eventos esportivos.
Compõem 60% dos atletas dos principais campeonatos norte-americanos, NFL (futebol americano), NBA (basquete) e MLB (beisebol). Mas não têm 15% dos cargos executivos dos times.
Tiger não questiona a situação.
Nos EUA, até hoje, um atleta negro, para se consagrar, deveu pro jetar uma imagem de conciliação.
"Matematicamente, sou asiático. Minha mãe é tailandesa, meu pai é descendente de chineses. Mas percebi que uma gota de sangue negro significa ser negro. Espero um dia transcender essa polêmica racial."
É assim, no silêncio, que Tiger pavimentou seu caminho no esporte.
Tornou-se tricampeão amador nos EUA, um recorde.
Anunciou sua profissionalização no final de agosto de 1996.
Menos de 45 dias depois, em 6 de outubro, obteve em Las Vegas sua primeira vitória -o mais rápido profissional a abraçar um título.
Terminou o ano com dois triunfos em oito competições.
A fama rendeu-lhe o prêmio de Esportista do Ano conferido pela revista semanal norte-americana "Sports Illustrated".
Em 1997, arrebatou 4 dos 13 torneios de que participou.
Foi, por exemplo, a sensação do Augusta Masters, um dos quatro eventos mais importantes (Grand Slam) do calendário anual do golfe, em abril, na Geórgia.
Dizimou quatro recordes daquele clube: margem mais larga de vitória (12 tacadas), menor número de tacadas em todo o circuito (270, 18 abaixo do par), mais jovem a chegar ao título (21 anos, 3 meses e 14 dias) e primeiro descendente de negros a levar a taça.
A vitória em Augusta garantiu-lhe uma vaga na Ryder Cup, confronto entre as seleções dos EUA e da Europa, entre 26 e 28 de setembro, na Espanha.
A partir desta quinta-feira, disputa o British Open, outro evento do Grand Slam.
Tiger ocupa atualmente a liderança do ranking da PGA, a associação mundial dos profissionais do golfe -de novo, é o mais jovem a conseguir essa façanha.
Até junho, dominava quatro categorias estatísticas do golfe no circuito do PGA: tacadas por campo (67,89), distância em "drives" (302,8 jardas), "birdies" por "round" (4,68) e frequência de "eagles" (1/55 buracos).
Em 97, acumulou US$ 1.761.033 em prêmios. Será o primeiro atleta do golfe a embolsar mais de US$ 2 milhões em uma única temporada.
"Adoro competir. Seja no golfe, em videogames, na escola. Competir com os outros ou competir comigo mesmo. Por isso, o sucesso não me assusta ou me preocupa. Sempre soube o que queria na vida. Nada vai me deter."
Para Tiger, o principal segredo de seu jogo é mental.
O golfista descreve seu estilo como uma valorização da intuição.
Antes de cada tacada, busca relaxar até "fazer adormecer a interferência do racional".
"Aprendi a valorizar meu subconsciente. Deixo a vida acontecer, em vez de fazê-la acontecer", declarou, após a primeira vitória no circuito profissional.
Por influência da mãe, adotou princípios budistas no dia-a-dia. Mas só alguns -"não quero renunciar ao mundo material".
Seu deus está por todos os lados.
No seu quarto, numa imagem de madrepérola, presente da avó tailandesa. No peito, num pingente de ouro pendurado numa corrente. No aniversário, quando, acompanhado pela mãe, vai a um templo oferecer aos monges um prato de arroz, açúcar e sal.
" Gosto do budismo porque é baseado na disciplina, respeito ao próximo e responsabilidade. Na Ásia, uma vez que você conquista o respeito de outras pessoas, você o terá para sempre. Aqui nos EUA, é diferente. O que você fez por mim recentemente? Não há descanso em nossa sociedade."
A mente é sã, o corpo não atrapalha. Tiger é alto (1,87 m), leve (74 kg) e muito elástico.
O suingue, para os especialistas em biomecânica, é o que melhor explica sua superioridade.
Numa tacada inicial (o "drive"), Tiger gira as costas em 120 graus, mantendo o movimento da cintura em apenas 30 graus.
Esse torque, fluido e constante, garante uma pancada sem precedentes no golfe e levou-o a se tornar o primeiro profissional do golfe a ostentar uma média superior a 300 jardas (274,3 m) no "drive".
Tiger é, também, em todo o planeta, quem toca a cabeça do taco na bola com mais perfeição.
A conclusão partiu da empresa Titleist, depois de testes com mais de 300 golfistas profissionais.
Tiger acerta bem no meio da face da cabeça do taco, num ângulo ideal de 9 graus. Além de mais força, isso gera menos efeito na bolinha, aumentando o rendimento no vôo e na grama quando ela cai.
"Esforcei-me para pegar o que ha via de melhor em 50 jogadores e clonar um superjogador."
O Augusta Masters deu à rede CBS uma audiência de 14,1 pontos (31% dos televisores ligados no horário), com picos de 20,2 pontos.
No total, 14 milhões de pessoas assistiram à competição, o recorde do golfe na TV dos EUA. Um crescimento de 65% em relação a 96.
Para os que acreditam na popularização do esporte como um todo, um número simples e demolidor: não importa seu desempenho no torneio, Tiger ocupa 30% do tempo de transmissão.
A CBS agiu rápido. Renovou o contrato com a PGA até 2005.
Em carne e osso, o impacto do fenômeno Tiger é ainda maior.
Primeiro, praticamente dobrou o público nos torneios de que ele participa.
O Byron Classic, sua penúltima vitória, no Texas, atraiu 260 mil pessoas durante a semana, contra 150 mil em 96. Seguranças precisaram abrir caminho na multidão para dar passagem aos golfistas.
Segundo, mudou o perfil do fã que acompanha o jogo "in loco".
Hoje, são frequentes nos campos equipamentos como celulares, câmeras fotográficas e pagers.
Eles ainda são proibidos, por desconcentrar os atletas, mas os clubes não têm capacidade para vigiar a tropa extra de torcedores.
Outra novidade foi a criação de cadeiras cativas nos campos.
Até Tiger estourar, o torcedor pagava ingresso e ficava à vontade no clube para acompanhar seu buraco ou golfista favoritos.
Agora, muitas pistas possuem áreas reservadas a executivos, com preços por cabeça que já atingiram US$ 1.500,00 num fim-de-semana.
Os golfistas consagrados dividiram-se sobre a febre.
"Ele é melhor do que eu", curva-se Jack Nicklaus, 57, considerado até então o mais completo jogador de todos os tempos no esporte.
"O circuito virou carnavalesco. Ele tem que respeitar as tradições", estilinga Mark Brooks, oitavo no ranking norte-americano.
A US Golf Association, máximo órgão do esporte nos EUA, precisou intervir para que a inveja não atrapalhasse o calendário de torneios -alguns cogitaram boicote.
Mas David Fay, diretor-executivo da entidade, já tomou partido: "Não dá para querer as duas coisas, que o golfe se popularize e que as pessoas não apareçam".
Tamanho o frenesi, Tiger teve aulas sobre como evitar, educadamente, o contato direto com os fãs.
Lição 1 - Fazer gestos bruscos sempre que pára no campo.
Lição 2 - Ao andar em direção à bola, balançar o taco a esmo, como se estivesse se aquecendo.
Lição 3 - Parado, colocar um pé à frente, garantindo, como no caratê, mobilidade para se esquivar.
No papel, o esquema parece suficiente. Mas de nada adiantou no torneio de La Quinta, Califórnia, no ano passado. Os tietes não se contiveram. Rasgaram camisa e calças do atleta.
Desde então, passou a usar seguranças -quatro guarda-costas e cerca de 20 policiais nos torneios.
O advogado John Merchant definiu o fanatismo que cerca seu ex-cliente: "Ninguém desde John Kennedy tem esse carisma, faz o público ter vontade de tocá-lo".
O próprio marketing do atleta aproveita esse apelo universal.
A Folha leu o texto encaminhado pelo agente de Tiger, Hughes Norton, ao time de publicitários da International Management Group.
Norton chama de alvo o mercado que apelidou de "grunge and grandmother" -numa tradução literal, maltrapilhos e vovó.
Em público, Tiger assume um papel de bom-moço -"gosto da idéia de ser um modelo".
Leva frequentemente crianças pobres para assistir seus treinos. Costuma dar palestras antidrogas. Vai criar fundação para dar bolsas de estudo para jovens carentes.
A empatia com os meninos é tanta que ele foi a fantasia mais vendida no último feriado de Halloween, o dia das bruxas.
Na intimidade, Tiger aparenta uma adolescência "normal".
Exagera as refeições em cadeias de junk-food. A comida mexicana da Taco Bell e os hambúrgueres do McDonald's são seus favoritos.
Adora montanhas-russas, jogar cartas e contar piadas sujas.
Detesta badalação. Nega entrevistas, rejeita convites para talk-shows, odeia festas a rigor.
Já recusou até convites da Casa Branca para visitar o casal Clinton.
Tiger cursou dois anos de história afro-americana na Universidade de Stanford, na Califórnia.
Hoje, mora em Orlando, atraído pela isenção fiscal da Flórida. Viaja para as competições em seu avião, comprado no último Natal.
Nunca ganhou um salário.
"Sinto falta de meus amigos da faculdade, de correr alguns perigos, de beber cerveja e varar a madrugada batendo papo. Os jogadores são velhos. Minha juventude se foi quando me profissionalizei".
Em menos de um ano como profissional, Tiger assinou cinco megacontratos de patrocínio.
A Nike deu o primeiro tiro -US$ 40 milhões em oito anos.
A Titleist, fabricante de equipamento de golfe, pegou o vácuo -US$ 20 milhões, cinco anos.
A terceira parceria foi fechada com a rede de lanchonetes All Star Cafe -US$ 7 milhões, três anos.
Para evitar a superexposição do protegido, o agente de Tiger decretou em novembro uma moratória de seis meses. Nesse período, nenhuma oferta seria considerada.
Desde abril, com a "reabertura" do mercado, foram fechados acordos com a American Express, operadora de cartões de crédito, e a Rolex, fabricante de relógios.
No total, o golfista embolsa US$ 14 milhões/ano em patrocínios, o terceiro no ranking dos esportistas, atrás só dos astros do basquete Michael Jordan (US$ 40 milhões) e Shaquille O'Neal (US$ 17 milhões).
Em 1996, o instituto Burns Celebrity Service, de Chicago, quis medir o apelo de atletas junto ao mercado publicitário. Promoveu uma enquete entre executivos dos principais anunciantes dos EUA.
Tiger foi o mais citado, com 28% dos votos. Jordan obteve 27%.
Outro órgão de pesquisa, o Sponsorship Research International, de Connecticut, perguntou a publicitários qual o esportista com maior retorno nas campanhas. Tiger surgiu em segundo, com 8%, depois só de Jordan, 36%.
Com Tiger, as lojas de golfe viram suas vendas triplicar em 97.
Em 96, o golfe significava 1% do faturamento da Nike. Hoje, a empresa de material esportivo festeja 1,6% -US$ 180 milhões em vendas- e prepara uma linha de roupas com o nome do jogador.
O principal objetivo da Nike é ocupar o mercado oriental, o de maior potencial.
O golfe vive um "boom" na Ásia. O continente entulha hoje 25 milhões de golfistas em 4.300 campos -nos EUA, são 25 milhões de atletas em 15.390 campos.
Os olhos levemente puxados de Tiger vão guiar a estratégia. Parece sopa. O homem, por si só, já é uma ponte entre Ocidente e Oriente.

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