São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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De olho vidrado no próprio bem-estar

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Primeiro foi o Japão, depois a Europa, os Estados Unidos e o Brasil. O Tamagotchi faz um sucesso louco onde é lançado. Qual o segredo do novo jogo informático? Trata-se de um animalzinho de estimação virtual que caiu na Terra depois de viajar pelo espaço cibernético. A novidade é que ele deve ser alimentado, estimulado, disciplinado e tratado carinhosamente, sem excessos e na exata medida. Do contrário, pode tornar-se obeso, preguiçoso ou ter acessos de birra, tristeza e, no extremo, morrer. O desafio é mantê-lo vivo o maior tempo possível, pois, em boas condições, chega a viver 30 dias.
Não vamos fazer disto um bicho-de-sete-cabeças. O Tamagotchi é só um brinquedinho feito com os instrumentos tecnológicos do momento. Meninas e meninos já brincaram com soldadinhos de chumbo, bonecas de louça, bolas de gude, cavalinhos de madeira, carros de plástico, trenzinhos movidos à pilha e não vejo razão alguma para não brincarem com criaturas virtuais, sentimentalmente afetáveis. Do mesmo modo, não partilho o temor dos que pensam que tais jogos inibem a imaginação de quem joga, nem acho que tratar brinquedos com afeto seja sinal de alienação emocional.
Toda criança projeta nos brinquedos uma carga afetiva enorme e, como mostrou magistralmente Winnicott, esta é a condição "sine qua non" do equilíbrio psíquico na infância e na vida adulta. Além disso, para muitos, como eu, que não acreditam em natureza ou essência universal do sujeito, imaginar seres humanos ou humanóides feitos de chips nada tem de escandaloso. Não sei por que o milagre da vida e da evolução das espécies deveria emperrar justamente ao fabricar seres de matéria orgânica como nós.
Quem gosta da companhia intelectual de Freud, Wittgenstein, Daniel Dennett, Richard Rorty, Isaac Asimov, Philip Dick, Arthur Clarke, Paul Anderson, Stanley Kubrick, Spielberg e outros, já está mais ou menos preparado para receber com simpatia nossos futuros primos, amigos ou companheiros de silício, sem contar os gêmeos clonados de diferentes gerações. A meu ver, portanto, o problema não é "aquilo de que somos feitos", mas "aquilo que queremos fazer" de nossa vida moral.
À primeira vista, o Tamagotchi é um joguinho politicamente correto. Nada de passar a perna no outro ou de querer estourar os miolos do adversário. O fundamental é a louvável intenção de manter o "ETzinho" vivo. Mas aí entra em cena a marca inconfundível dos bons sentimentos comerciais, "made in qualquer lugar", já que é tudo igual.
O jogo é a cara das idéias fixas das elites urbanas, internacionalizadas pela informação e pelo mito da globalização. A ecologia, a alimentação saudável, o relacionamento psicológico "normal" entre adultos e crianças e o medo inutilmente obsessivo da morte resumem a moral da brincadeira, que, para ser completa, precisaria apenas incluir discussões sobre sexualidade, código do consumidor, mercadofilia como forma de vida, bê-á-bá do sucesso e, por fim, uma lista anualmente renovada dos "dez mais sérios manuais de auto-ajuda".
Nos contos de fadas e nas histórias de bandidos e mocinhos, perdedores e vencedores, mesmo quando caricaturados de forma maniqueísta, referiam-se sempre aos ideais de bem e mal pelos quais lutavam. A relação com o Outro era a fonte normativa das crenças, ações e desejos aprovados. No Tamagotchi, a principal lição é a de que se manter vivo e de olho vidrado no próprio bem-estar é o sumo bem e a finalidade última da existência.
A disputa para sobreviver, independente do sentido da vida, reproduz o mote da preocupação narcísica com o "mínimo eu", típica de nossos tempos. Obviamente, não se trata de querer ensinar ao Tamagotchi como sonhar moralmente com o século 19, vivendo no século 20, coisa que estamos fazendo, sobretudo em nossa vida privada. O que se pede é menos tolo e menos anacrônico. Pede-se somente que, no jogo do Tamagotchi, as crianças possam aprender a desejar da vida algo além de sobreviver física e emocionalmente, para que o bichinho não se torne a infeliz metáfora da cultura que lhe deu origem.
Enfim, não sejamos rabugentos. Quem quiser e puder, compre o Tamagotchi para os filhos. Mas que tal contar-lhes também outros contos? Por exemplo, há pouco tempo, no Rio de Janeiro, um garotinho de 9 anos foi preso traficando drogas. No ato da prisão, cobriu o rostinho e, com o ar apavorado de um bichinho que perdeu o rumo, perguntou ao repórter: "O juiz vai me bater?". Ele não veio do "cyberespace". É daqui mesmo; deste nosso Brasil. E sem alimento, amor, cuidado, atenção e carinho também morre. Como o Tamagotchi.

E-mail jfreirecosta@ax.ibase.org.br

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