São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Hércules biônico e politicamente corrigido

ANTONIO MEDINA RODRIGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Hércules" tem apelo escolar. Mostra heróis, deuses, titãs, vilões, monstros, templos: mitologia grega. E tem uma "biografia" novelesca, sentimental e bastante agitada. O bombardeio dos fotogramas é tremendo. Só crianças acompanham. Consultei minha neta, de sete anos:
- Afinal, Ninô, aquela moça casou com Hércules?
- O senhor não viu? Ela quis ficar com ele. E ele preferiu não ser um deus.
A resposta foi um golpe. Porque eu, de fato, não tinha percebido. Mostrei minha contrariedade. Disse que na vida, sim, podia haver casamento confuso. Mas num filme não tinha cabimento. Não porque ela fosse bandida, e ele fosse quase um padre. Há bandidas boas. Mas aquela não era nada. Era um boneco.
- Mas por quê, vovô?
E quase que eu disse que o filme dera a Meg certos ares terceiro-mundistas, que seu gesto era córneo e vulgar, clicheria, Miami etc., e que mesmo assim agradava a platéia, que comia pipoca, e era preciso vender pipoca, vender cinema, vender tudo, coisa que, no fim, iria agradar hispanos e americanos. Mas apenas disse:
- Bandida, vá lá, Ninô. Mas não se pode vender a alma.
Na verdade, eu queria fadas. No meu tempo, Disney tinha moças provençais. Hoje tem realismo. Ninguém mais casa com fadas. Mas minha neta suspeitou que eu "pitagorizasse". Então, parei com esse assunto. Por desvantagem neuronal.
Meu problema é que, na falta de presteza, eu tinha feito uma leitura autoconsoladora, "paradigmática". Zeus, por exemplo. Esse vinha-me numa figura imensa, claro-fulva, bovina, texana, assexuada. Só lhe faltava o rifle. Não era o Zeus de Hesíodo, nem o de Homero, nem o de Jaa Torrano. Era um Zeus que chorava o sumiço do filho, como qualquer pai de hoje. E o filho era excepcional. Tinha tanta força (como poucos filhos de hoje). Mas não tinha talento. Aos poucos, seu rosto foi ficando impessoal, mistura de Charlton Heston, Billy Graham, Kirk Douglas. Rosto de segurança ocidental, e equanimidade dos governos. Já os inimigos de Hércules tinham a boca do "Tubarão", de Spielberg, que voltou recuperada.
Contra quem lutavam Hércules e o pai? Contra Hades, o terrível deus dos Infernos, agora deus dos marginais, e com uma performance tremendamente ágil, moderna. Mas que tipo de impulso tem Hércules? Ele não quer ser biônico, contradiz a produção do filme. Hércules quer ser comunitário, e sente-se rejeitado. Mas ninguém queria ser um deus, e essa é a falsidade. Primeiro, porque os heróis gregos não querem ser deuses. Segundo, porque, ou se é deus, ou se é comunitário. Terceiro: ao excesso de forças, qualquer herói acrescenta a precariedade dos miolos. E, quem quer ser deus, não se apaixona. E muito menos casa.
Os heróis da Grécia nunca foram Romeus e Julietas. Nem se deixavam morrer (ou viver) de amor. Conduziam seus povos, como diz Homero. Hércules não fez nem uma coisa, nem outra. Tinha problemas. Salvava, sim, as cidades. Mas como o National Kid. Por isso, o pai lhe aconselhou a "ouvir o coração". Enfim, coisas modernas, mas não gregas.
Herói é quem "briga" com os deuses, não porque quer, mas porque seu ser os desafia. Um herói só pode obedecer a si. A realidade para ele é uma extensão. O herói é uma entidade histórica, uma forma retrospectiva. Só os que morrem podem ser heróis. O presente não "heroíza". Todos, no presente, somos santos de casa. E nosso sacrifício, no presente, é burro. Se não morresse, Ayrton Senna teria cometido um erro a mais, ou tido uma falta de sorte etc. Morrendo, a história encarregou-se de ver nele a expiação dos nossos erros, que são muitos. Por isso ele foi trágico. Senna era puro instinto. Já o Hércules disneyano é todo programado.
Daí a falta do Desejo. Essa é uma questão complicada. A partir da Idade Média, o herói da Antiguidade sofreu uma divisão, porque a mulher estava retornando à esfera cultural do homem. Uma parte do heroísmo se tornou galante, e outra se tornou comunitária (mas não misógina, apesar das guerrilhas contra o casamento obrigatório). A partir de então, o trajeto heróico ou visa à mulher, ou visa aos prêmios institucionais. São dois instintos, duas paixões. E foi isso que as grandes narrativas ensinaram. Mas, depois do romantismo, os dois vetores se misturam, primeiro por razões formais, e, logo, por razões políticas, industriais. Dessa mistura, foi-se afirmando a última tendência, mais abstrata, e o casamento passa a digitar a afetividade, no momento em que a negava.
Em "Hércules", a união é forçada, e politicamente corrigida, já sem amor nenhum (as micagens de Meg e Hércules não convencem). Porque os amores são estritos. E é difícil colocá-los numa trama social. Melhor será afirmá-los por decreto. E, como a maioria pensa que este amor é um dado, uma condição natural, toda a questão fica desde já resolvida. Isso fez do amor uma valise. E não será melhor? Mas o problema é que, por extensão, tudo passa ao abstrato. Fica faltando outra metade da vida.
Isso é visível na educação. Queremos simplicidade (outra coisa suada). Só a simplicidade é pessoal e criadora. Só a simplicidade é capaz de tecer formas do amor. O resto é convenção, trocas, máscaras. E se as pessoas se amam, por que não mostrar? Porque apenas afirmar que se amam? Por que mentir em nome da generalidade? É claro que o cinema é experiência. É claro que somos "industriais". Mas também é necessária a crítica. Sem esta, não há real experiência. A que leva "Hércules"? Àquela cançãozinha brega do final. Não nego a breguice. Nós a produzimos. Mas não para ensinar a Grécia. Importa ler de novo o avô Lobato.

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