São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Um observador refinado

LEDA TENÓRIO DA MOTTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Primeiro é o título, "Trivial Variado", que surpreende na capa do livro de Marcelo Coelho. Pois, se os temas, por força do ofício inspirados em nosso belo quadro social -"Mendigos", "Garotos de Rua", "Rede Globo", "Ginástica", "Os Três Tenores", "Carlota Joaquina"-, ficam por aí, nesse leque de mazelas cotidianas e pseudograndes acontecimentos a que o país se curva, o mesmo já não se pode dizer do fôlego das abordagens, que vêm logo mostrar quais são os horizontes do jornalista. O leitor encantando-se, então, ao descobrir que é por pura auto-ironia que o observador refinado coloca tudo, por assim dizer, no mesmo saco.
Depois, é o impacto do gênero, "Crônicas", totalmente despido de pretensão, e tornado "démodé", sob o qual vem se inscrever essa reunião de textos representativos do seu trabalho de articulista na Ilustrada, desde 1993. Pois artigos tais fariam jus a qualquer rubrica mais altiva -reflexões, notas, escritos, ensaios...-, dessas que costumam encabeçar obras assinadas por quem de direito.
Salta à vista, aliás, o modelo nobre por trás desse suposto "arroz com feijão" hebdomadário, na verdade, uma pequena peça de inteligente, culta, empenhada, generosa, divertida, equilibrada intervenção no domínio da crítica da cultura. Firme o bastante, além do mais, e desamparada o bastante, ainda por cima, para não incorrer nem na falta de um mínimo de furor, considerado indispensável, nem na reiteração de tomadas de posição política que, lemos na "Apresentação", correm o risco de virar marca registrada, transformando quem escreve na caricatura de si mesmo.
Ora, nada mais digno de um cultor de Barthes! Este sim, o mestre, que Marcelo Coelho, embora não o cite, não pode não pressupor. Ele, que, a propósito do mais pedestre dos assuntos, por exemplo, o conhecido pregão paulistano das pamonhas de Piracicaba, tem sempre um grande livro em mente (no caso, "The Golden Bough" (O Ramo Dourado), de Sir James Frazer, o historiador britânico das religiões). Ele que é sensível, nessa singela cantilena, ao estatuto de essência do "puro creme do milho" -não "de" milho, "do" milho, note-se, assim como, nas "Mithologies", Barthes enxergava no vinho e no "bifteck" (bife) mal-passado nada menos que a alma francesa.
É de mitólogo, em suma, a sutileza, senão a paciência, com que, a cada volta, nosso articulista supera o primeiro grau das informações e vai atrás do sentido oculto, do valor simbólico, geralmente inconfessável. O sucesso do filme "Carlota Joaquina", somos, assim, convidados a ponderar, deve-se menos a suas qualidades que a lusofobia que nos reinstala em nosso cômodo mal-estar de eternos frutos da incompetência portuguesa!
É de antropólogo urbano, às voltas com o sagrado contemporâneo, o apontamento de imagens transfigurantes na base de realidades bem concretas da esfera do mercadológico. Aquilo com que acena a enxurrada de anúncios de flats nos faróis de São Paulo, lemos pois, não é exatamente outra morada, mas, para fazer passar o apartamento, outro mundo, outra vida, outra pessoa, como se fosse possível nos livrarmos da residência em que se constitui o nosso corpo!
É de semiólogo o desvelamento das alienações atuantes no grande barulho que nos cerca, calando em cada um de nós o sujeito, transferido para o objeto. A música das FMs que, pretensamente, enche de vida os ambientes, sejam piscinas, consultórios, elevadores, supermercados, nada mais faz que dinamizá-los por fora, preenchendo o vazio de cada qual, relegando ao movimento externo a vida interior que não há!
Some-se a isso o prêmio de prazer ou a economia de benefícios que o autor vê funcionar perversamente em certos ritos locais. O sofrimento físico nas academias de ginástica, ao qual muitos se entregam com resignação, tem a vantagem de substituir as dores da alma pelas do músculo, bem mais suportáveis, sem falar que desculpabiliza o consumo de bombons, pizzas e geléias! Veja-se o trato de detalhe, em cujo capricho ele se compraz. Ao aplicar os dentes num bombom Ferrero Rocher, o consumidor de itens de importação, que terá encontrado aí o maior fetiche dos últimos tempos de déficit da balança comercial, passa do rugoso ao cremoso, por casquinha interposta, até ir bater num caroço de avelã, todas as quatro ordens bem separadas. Com o que se supera o caráter simplório do Sonho de Valsa, lisa pelota de chocolate a partir da qual, passando por análoga casquinha, que funciona neste caso como única forma discreta, se progride até um centro grudento, qual o próprio caráter brasileiro miscigenado, uma guloseima estando para a outra, assim como a música clássica está para a seresta ou a marcha-rancho!
Aprecie-se a sua sensibilidade para o paradoxo. A boa classe média, que clama por aragens de Primeiro Mundo, permite-se, como se isto fora liberalismo, a indisciplina do estacionamento em fila dupla, enquanto, com a plebe que serve nas portarias dos condomínios fechados, estamos em plena Prússia, nos rigores do inverno dinamarquês, pois não há "jeitinho brasileiro" que demova a "baianocracia" do respeito às regras!
Sorvam-se, enfim, a elegância aforística, os crescendos, o talento de escritor do jornalista. Por exemplo, no artigo sobre "Adolescentes": "Todo adulto reclama da cretinice dos mais novos. Há muita inveja em curso"; ou, num outro, sobre as "Antiguidades de Freud" aportadas no Banco Real: "As fotos fazem toda quinquilharia revestir-se de uma aura própria, de um fundo neutro, de iluminações especiais, de importância fantasmagórica"; ou, num outro ainda, sobre "Colegiais", em que ele chama a atenção para o "inintelectualismo" da "geração saúde", insuflado por uma de nossas loiras apresentadoras de televisão: "Tudo o que for exercício físico, agitação de dança e de ginástica, é bom. Cigarros significam paralisia, vida sedentária, leitura. Nada a favor dos cigarros, quanto a mim. Mas o problema da Angélica é que fumar já é um hábito reflexivo, 'parado' demais. Ler já dá câncer".
Distribuído em cinco seções -"Pessoas e Circunstâncias", "Diário Paulistano", "Cinema-Teatro", "Livros", "Artes Plásticas"- todas no mesmo tom de discreto ceticismo, a que não são estranhos os "não sei!", os "será quê?", os "tudo bem... mas", que voltam como estilemas, "Trivial Variado" resolve os problemas, se é que os havia, da coletânea anterior, "Gosto Se Discute" (1994). Em que o autor oscilava, como lembra agora, entre a timidez e a pretensão, e se sentia desconfortável com a brutalidade de seus julgamentos algo incisivos.
Não, não há nada de brutal nessa crítica intelectualizada e sem nenhuma afetação. O que há é o prato fino do despojamento -"tudo se tornou mais direto e mais curto", diz Marcelo Coelho- e certa propensão a suspender o julgamento. Qualidades indispensáveis à contemplação do mundo em volta, tarefa esta que, quando bem realizada, pouco importa sobre que suporte, se costuma chamar "literatura".

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