São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Insossas notas de leitura

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

José Guilherme Merquior, morto em 1991 aos 49 anos, era uma dessas curiosidades intelectuais que, às vezes, surgem em países como este. Começou sua carreira cedíssimo, como crítico literário, e, quando morreu precocemente, era conhecido, no Brasil, sobretudo como polemista cultural conservador -uma espécie de flagelo da autocompetência dos pensadores da esquerda nacional- e, no exterior, como um bom expositor de teorias das ciências sociais.
Excelente "public-relations" de si mesmo, ele conseguiu aquilo a que todo intelectual subequatoriano aspira no imo do seu ser, mas nem sempre confessa a alunos e seguidores: ser publicado em inglês e francês nos grandes centros mundiais. Ele mesmo, aliás, escrevia nessas línguas seus textos -uma proeza para alguém nascido num país cuja intelectualidade nem sempre domina o próprio idioma. E se, como muitas coisas indicam, essa era mesmo uma de suas aspirações centrais, ele mereceu, sem dúvida, vê-la realizada antes de morrer, pois à sua atuação não faltavam necessariamente méritos.
Seus primeiros artigos, escritos ainda na adolescência, revelavam um crítico lido e com a coragem juvenil de enfrentar os poderes do momento, algo bem exemplificado no texto em que atacava a geração de 45. Além disso, nesse começo de carreira, ele estava sintonizado com a literatura (então) recente e não havia desenvolvido ainda seus posteriores preconceitos e/ou desinteresses. Logo depois, um pouco menos jovem, mas não muito, ele esteve entre os primeiros a falarem aqui da Escola de Frankfurt ou do formalismo russo. Em seguida, num país em que só não rende vassalagem absoluta à França o intelectual que se julga superior por saber alemão, ele cuidou de lembrar constantemente que o mundo anglo-americano também pensava e discutia, não raro melhor.
Entre seus deméritos há alguns de ordem pessoal que, em princípio, não deveriam prejudicar a justa avaliação de seu legado. Naturalmente, o pior de todos foi ter-se associado ao regime militar. Por mais que fontes isentas garantam que fez bom uso de seus contatos, ajudando oposicionistas perseguidos e todo o resto, isso não o desculpa, pois o problema principal não estava tanto no caráter direitista do movimento, quanto em sua absoluta mediocridade. Em todo caso, essa associação tem sido usada, nem sempre de boa-fé, para, qualificando-o de conservador, descartar seu trabalho.
É uma pena, por duas razões: a primeira é a de que Merquior sempre veiculava informação interessante nas áreas que abordava; a segunda é que descartar seu trabalho apenas devido ao conservadorismo equivale também a anistiar suas falhas mais graves.
"O Véu e a Máscara", escrito em inglês e publicado na Inglaterra ainda nos anos 70, com um prefácio de Ernest Gellner, é um volume que dá bem a medida de seus prós e contras. Trata-se de uma coleção de sete ensaios em que o autor discute temas de sociologia, antropologia social, história das idéias e outros, analisando o conceito de ideologia, expondo a trajetória do conceito de cultura, sua nova definição pelos românticos alemães, o nascimento, mais ou menos a partir disso, da moderna antropologia, polemizando com o marxismo althusseriano, discutindo a obra de Jürgen Habermas etc., embora tenha suas próprias opiniões, ele as coteja honestamente com as alheias e sempre abre um leque amplo de idéias no qual a omissão intencional ou a deturpação voluntária não são recursos admissíveis.
Merquior, como era seu hábito, dispunha das melhores informações e, se não havia lido com absoluta atenção, pelo menos tinha acesso a todas as obras relevantes em qualquer área. Para 138 páginas de texto (incluindo-se o prefácio), ele oferece nada menos que 18 de bibliografia. Não está nada mal. E o que ele faz com tudo isso? Muito pouco.
Seus tópicos interessantíssimos são tratados com uma aridez exemplar e, pior, praticamente isenta de idéias realmente originais. Ele se contenta em expor o pensamento alheio, acrescentando-lhe um pequeno julgamento próprio. Seu estilo é burocrático e seus textos, mais do que ensaios (na definição rigorosa do termo), são notas de leitura. Merquior demonstra, neste livro, como em tantos outros, que não era tanto um bicho-papão arqui-reacionário quanto um geniozinho precoce que virou adulto insosso.
Mais do que o grande intelectual orgânico do regime militar ou agente do imperialismo, ele foi, até o fim da vida, apenas aluno hiperaplicado, sempre em busca de um mestre a quem pudesse mostrar -em várias línguas- quão bem decora sua lição.

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