São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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A consciência tranquila de Clinton

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em Denver, o presidente Clinton deu uma lição aos europeus e sobretudo à Alemanha, à França e à Itália, que têm um crescimento insuficiente e uma taxa de desemprego elevada. Ele conclamou estes países a seguirem o exemplo dos Estados Unidos, que passam por uma expansão econômica única no que se refere à sua duração e à alta (quase fabulosa) das ações de Wall Street. É difícil fazer frente a tal discurso, já que o contraste entre a virtude americana e os pecados dos europeus parece absoluto. Não é normal que o justo seja recompensado e que o mal seja punido: o modelo americano parece tão exclusivamente normal ao presidente Clinton que ele chegou a propor a seus convidados vestirem-se como ele próprio, fantasiado de caubói americano, o que a maioria recusou. O presidente Clinton certamente não acharia graça em disfarçar-se de camponês bávaro ou cantor napolitano. De todo modo, aqui se apresentam duas perguntas sérias. A primeira indaga se a flexibilidade e a abertura ao mercado foram os principais fatores do êxito econômico americano, e a segunda procura saber se a manutenção das rígidas políticas sociais redistributivas na Europa são incompatíveis com um sólido crescimento econômico. Nenhuma destas perguntas permite uma resposta simples.
Entre as causas do sucesso americano e do fracasso europeu, dois fatores parecem essenciais. O primeiro é a revolução empresarial que foi preparada e realizada quase inteiramente nos Estados Unidos a partir dos anos 60, ou seja, bem antes da era Reagan. Mas de onde vem esta diferença entre os Estados Unidos e a Europa ou mesmo o Japão? Tocamos aqui no segundo fator que favoreceu os Estados Unidos. A Europa, como os Estados Unidos, adora o "big business", a aliança do Estado, das grandes empresas e dos sindicatos influentes, de que Robert Reich disse definirem a época antiga da sociedade industrial.
Em ambos os lados do Atlântico vimos a crise e o declínio deste sistema, sobretudo as dificuldades da maioria das grandes empresas americanas, da indústria automobilística à IBM, com a única espetacular exceção da General Electric, que passou por profundas transformações. Onde os Estados Unidos excedem é em sua capacidade de criar pequenas e médias empresas inovadoras, das quais muitas tornaram-se rapidamente grandes, e, de modo mais geral, em sua aptidão para estabelecer um meio favorável à inovação e à transformação de idéias sobre a administração.
O que chamamos de revolução empresarial submete as empresas às exigências do mercado em vez de organizá-las em torno de princípios internos de racionalização, como ainda ocorre na Europa. Tudo isso leva a admitir que a economia aberta ao mundo é hoje mais eficaz que uma economia construída ao redor das intervenções do Estado, modelo que, depois da 2ª Guerra -durante o período de reconstrução nacional-, foi o mais indicado às necessidades dos países voltados "hacia afuera", como dizia a Cepal. Inovação tecnológica e abertura ao mercado são dois fatores essenciais, indispensáveis, do êxito econômico.
Isso nos leva a afirmar que a política social de flexibilidade não é um fator essencial do sucesso econômico. Antes, ela definiu um modelo social específico de modernização. É lícito dizer que os Estados Unidos e o Reino Unido escolheram a precariedade, e que a França, a Alemanha e a Itália elegeram o desemprego. Em um e outro caso, o fracasso social é evidente e grave, mas não há motivo algum para dizer que a precariedade cria uma situação mais favorável à modernização econômica do que o desemprego.
Na verdade, existem outras diferenças entre os Estados Unidos e a Europa que explicam suas respectivas escolhas, em especial a presença nos Estados Unidos de uma grande imigração -muitas vezes clandestina, proveniente sobretudo do México e da América Central- e também a manutenção de um terço da população negra na pobreza e no isolamento dos guetos. Os Estados Unidos sempre foram uma sociedade dividida, atravessada por fronteiras étnicas difíceis de transpor, ao passo que a longa tradição do "Welfare State" europeu favoreceu tanto os êxitos quanto os fracassos das intervenções estatais.
Isso leva a acrescentar um terceiro fator que intervém fortemente no malogro europeu. Os êxitos do "Welfare State" acabaram por aumentar a resistência e a influência sobre o Estado dos grupos sociais mais organizados e mais influentes, que, evidentemente, não são os mais pobres nem os mais fracos. Os desempregados não possuem a menor capacidade de pressão, mas os assalariados das empresas públicas -aviação, ferrovia, correios, telecomunicações etc- exercem uma grande influência política e são capazes de desencadear gigantescas greves que, muitas vezes, lhes permitem manter as vantagens ameaçadas.
É preciso, assim, reconhecer claramente que um modelo de gestão econômica substituiu-se a outro, mas que, ao mesmo tempo, esse novo modelo de gestão econômica pode ser associado a formas bem diversas de gestão social. O erro mais palmar seria crer que a abertura internacional das economias e as revoluções tecnológicas permitem apenas um único tipo de sociedade, a que os Estados Unidos dão o exemplo mais bem-sucedido -tão bem-sucedido a ponto de os dirigentes e a opinião pública deste país persuadirem-se cada vez mais de que seu modelo é o único possível e que os outros países não têm outra escolha senão imitar os EUA ou, então, mergulhar no subdesenvolvimento.
O que acabo de dizer da Europa aplica-se com tanto mais razão à América Latina. Ela deve aceitar a concorrência internacional, diminuir os déficits públicos e favorecer a inovação técnica aliada à pesquisa científica, mas deve também, como objetivo prioritário, lançar-se à luta contra a grande pobreza rural e urbana e a eliminação da violência. Se, por um lado, os Estados Unidos aceitam as crescentes desigualdades e uma taxa de violência elevada que se traduz no aumento de sua população carcerária, o Brasil e outros países devem, por sua vez, reduzir as desigualdades e diminuir a violência, muito menos por razões econômicas que por razões sociopolíticas, isto é, para impedir uma ruptura da sociedade e o aumento do número daqueles que se sentem alheios a uma sociedade que os marginaliza e os exclui.
Hoje, a primeira condição do desenvolvimento, para todos os países, é uma séria análise das exigências do novo sistema econômico e as diferentes políticas sociais que se acham à sua escolha. Em todas as épocas, certos elementos da situação são comuns a todos os países, ao passo que outros são específicos de cada um. Mesmo hoje, nos condenamos à imobilidade e à crise se pensarmos que é preciso escolher entre um social-estatismo global e um liberalismo absoluto. Cada país, ao contrário, deve eleger a política social compatível com a nova situação econômica, mas que corresponda também às exigências de sua sociedade e de sua vida política. Eis por que o presidente Clinton, certamente sincero e até cheio de boas intenções, é equivocado e perigoso.

Tradução de José Marcos Macedo.

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