São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Justiça internacional e direitos humanos

FRANCISCO REZEK

Por conta de duas preocupações variantes, o tema dos direitos humanos tem vindo a debate público e justificado movimentos de opinião no Brasil de hoje.
Uma, sempre comum em toda parte, tem a ver com as garantias mínimas que o Estado deve dar a quem, seja por prática provada de crime, seja ainda no quadro da investigação criminal ou no da simples manutenção da ordem, vê-se um dia sob a coação do poder público no que este mostra sua face sombria. A outra, mais transparente em determinados países e épocas, prioriza a vítima -sobretudo no homicídio e na violência sexual- e leva a reclamar severidade na punição do criminoso.
Nos dois casos, ante a opinião pública, o Estado é réu. Dele se exige, no primeiro, não exatamente que modere o rigor de sua Justiça -vista, pelo contrário, como condescendente-, mas que contenha seus agentes armados, seus rastreadores, seus carcereiros. Dele se quer, no segundo, que cumpra seu dever legal de prevenção e repressão do crime e o faça em bases igualitárias.
Isso significa não permitir que a qualidade e a rapidez da investigação criminal se determinem em função do estatuto social e econômico do agente e da vítima. Significa também lembrar à Justiça que o desfecho de todo processo deve ser a aplicação da lei, não uma espécie de distribuição dos louros da vitória no confronto entre a garra e o talento da acusação e da defesa.
Essa última atitude, não muito rara entre nós, leva quase sempre ao benefício do réu e responde pela imagem de tolerante que tantos brasileiros têm de sua Justiça.
Não adianta lembrar que, em alguns poucos casos, nos últimos anos, ela foi mais severa do que teria sido a Justiça de outros países em iguais circunstâncias. Quando excepcional, o rigor não contrabalança a leniência; antes denuncia do modo mais áspero possível a gravidade do problema. Esse quadro explica a frequência com que pontilha no Brasil, não só entre ONGs e ativistas, a idéia de levar tal ou qual caso ao exame de um tribunal internacional.
Porque antiga e notória, a Corte de Haia é lembrada às vezes, embora não possa cuidar da matéria quando colocada desse modo. Ela resolve conflitos entre países tendo a ver, por exemplo, com fronteiras ou com a responsabilidade de cada um por dano causado a outro: hipóteses que no passado tantas vezes levaram à guerra.
Por estes dias, a corte terminou de julgar uma demanda colossal entre Hungria e Eslováquia sobre o frustrado projeto de um complexo de barragens no Danúbio, e começou em seguida a examinar uma ação da Líbia contra EUA e Reino Unido, em que a primeira anuncia a intenção de provar sua inocência no desastre aéreo de Lockerbie e a consequente ilegalidade das medidas que, sob acusação de patrocínio do terrorismo, foram tomadas contra ela.
Funcionam também em Haia alguns tribunais temporários, criados pela ONU para julgar algo tópico, como os crimes praticados na ex-Iugoslávia. Nenhum deles está autorizado a decidir casos avulsos de alegada afronta aos direitos humanos, do gênero desses com que se preocupa uma parcela hoje importante da sociedade brasileira.
Com esse exato objetivo, o que existe são tribunais permanentes, mas não universais, como o que as comunidades européias criaram em Estrasburgo nos anos 50, ou aquele que o grupo interamericano pôs a funcionar, 20 anos mais tarde, em San José da Costa Rica.
Mas o Brasil, apesar de vinculado à Convenção de San José na sua parte substantiva, e obrigado por isso à garantia dos direitos humanos que ali se descrevem -sem muita diferença, diga-se, do que também foi escrito em nossa Constituição a respeito-, preferiu não declarar submissão ao tribunal que fiscaliza, quando provocado, o cumprimento fiel do compromisso.
Não somos o único país do continente a ter agido assim, e houve quem entendesse ficar fora não só da jurisdição do Tribunal de San José, mas da própria convenção regional que arrola os direitos elementares da pessoa humana e manda ao Estado que os proteja.
Ninguém desconhece que a submissão do Estado soberano a uma jurisdição internacional permanente é uma causa possível de constrangimentos e mal-estares, sobretudo em matéria desse grau de sensibilidade. Há também alguns riscos secundários para o próprio Tesouro Público.
Mas a Constituição de 1988 diz, logo no começo, que o Brasil lutará pela criação de um tribunal internacional de direitos humanos. O constituinte parecia desatento ao fato de já existir algo assim, não sendo o caso de lutar pela criação de um foro, mas tão-só de reconhecer-lhe a competência.
Ao fim e ao cabo, o que temos é uma questão pungente na sua ironia: saber se, também naquelas passagens cuja redação imperfeita revela um contraste entre as melhores intenções do constituinte e a insuficiência de suas leituras, a Constituição deve ser levada a sério.

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