São Paulo, domingo, 13 de julho de 1997
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Xuxa, Rousseau e a boquinha da garrafa

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Luís 13 ainda não tem um ano: 'ele dá gargalhadas quando sua ama lhe sacode o pênis com a ponta dos dedos'. Brincadeira encantadora, que a criança não demora a dominar. Ele chama a pajem 'com um ei! e levanta a túnica, mostrando-lhe o pênis'.
Luís 13 tem um ano: 'Muito alegre, ele manda que todos lhe beijem o pênis'. Ele tem certeza que todos se divertem com isso. (...) A rainha, sua mãe, também gostava dessa brincadeira. 'A rainha, pondo a mão em seu pênis, disse: - Meu filho, peguei a sua torneira"'.
O trecho acima, encantador, encontra-se na "História Social da Criança e da Família", o célebre livro do historiador francês Philippe Ariès. Estamos no final do século 16, e Ariès segue de perto as anotações meticulosas que o médico de Henrique 4º fazia a respeito das travessuras de seu filho, o pequeno Luís 13.
Nessa época, nos ensina Ariès, ainda se desconhecia uma noção que logo a seguir se tornaria essencial: a inocência infantil.
Coube a Rousseau, no seu "Emílio", lançado em 1762, cujo subtítulo é "Da Educação", desenhar os contornos dessa "inocência infantil" tal como a consideramos ainda hoje. Apesar de Freud, que dedicou boa parte de sua vida ao combate desse mito, ele sobreviveu. Entre a figura do "bom selvagem" e a teoria da sexualidade infantil, não hesitamos. Fechamos com a primeira. Somos profundamente rousseauístas.
E Xuxa, que está perdida lá no título, o que tem a ver com isso?
Digamos que Xuxa age com as crianças como a rainha, a mãe de Luís 13, fazia com seu pimpolho, mas imagina ser uma digna herdeira das lições de Rousseau. Sexualizando tudo, ela acredita (ou finge acreditar) estar formando "almas inocentes". Essa esquizofrenia, da qual a "rainha dos baixinhos" não é a única depositária, tem data e explicação histórica.
Simplificando ao máximo, é correto dizer que nos tempos da rainha francesa a noção de família burguesa ainda não estava formada; hoje, no reinado de Xuxa, ela se encontra em fase avançada de desagregação. A diferença fundamental consiste no fato de que a permissividade atual está subordinada às exigências de mercado. Liberem-se os instintos, desatem-se os nós da sexualidade infantil -tudo em praça pública!!!-, mas desde que isso dê um bom lucro, não para as crianças, é claro.
Equivoca-se na crítica, portanto, quem sai em defesa da moralidade, escandalizado com o fato de Xuxa ter perguntado no ar à "mulata globeleza", Valéria Valenssa, "se a purpurina entrava lá". Com o perdão do trocadilho, o problema é mais embaixo.
A porta da sacanagem já foi escancarada há tempos. E a indústria cultural logo percebeu que isso pode ser "uma ótima". O fenômeno dos Mamonas, os quadros do Gugu com concursos de crianças dançando na "boquinha da garrafa", a explosão de Carla Perez, que agora também vai apresentar um programa infantil, -tudo, enfim, evidencia que as crianças já entraram na dança da roda da fortuna.
Tolos e sentimentais, ainda nos emocionamos quando vemos na TV seres indefesos, todos fantasiados de bichinhos, como pequeninos mamíferos tomando leitinho.
Enquanto isso, a criançada prefere mesmo o reino da porcalhada, que a mesma TV já lhe dá.
Fingimos que o mito da inocência infantil, tal como o formulou Rousseau, ainda pára em pé. Xuxa nem sabe, coitadinha, que há muito tempo está dançando na boquinha da garrafa.

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