São Paulo, terça-feira, 15 de julho de 1997
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Mas isso é arte?

CELSO FIORAVANTE
ENVIADO ESPECIAL A KASSEL

A norte-americana Christine Hill tem um brechó em Berlim, o "Volksboutique". Nele vende camisetas, roupas e objetos de segunda mão em geral. Ela tem um conceito. Ela é uma artista.
O alemão Lothar Schlückebier tem uma loja na cidade alemã de Kassel, onde vende roupas e uma grande variedade de mercadorias. Mas ele não tem um conceito. Ele é só um vendedor.
Até aí, nenhum problema, não houvesse Christine Hill sido convidada pela curadora francesa Catherine David para participar da mostra de arte contemporânea Documenta, em Kassel.
Para o espectador que trafega pelas passagens subterrâneas onde os dois personagens estão localizados, a diferença entre eles, identificada pela curadora, não é tão clara.
A confusão se deve principalmente aos conceitos levantados por Christine Hill, que são muito distantes do senso comum.
"Volksboutique" pode ser um brechó, mas é também uma obra interativa, uma performance, uma instalação que questiona as relações entre as pessoas e delas com a obra de arte. Hill chama seu projeto de "um novo espaço social".
"Meu trabalho é uma forma de crítica contra as formas hipertecnológicas de trabalho. É também sobre como trabalhar em bases individuais, de pessoa para pessoa. Meu trabalho quer dar um novo significado para a conversação", disse Hill à Folha.
Essa diferença entre uma obra de arte e um objeto ou atitude cotidianos foi levantada nos anos 10 pelos dadaístas (Duchamp à frente), mas ainda hoje assusta o espectador.
"Toda vez que alguma lei da arte é transgredida, essa pergunta volta, com a mesma força, pois é uma questão inerente à arte. Sempre houve um descompasso entre a proposta do artista e aquilo que o público pode aceitar. Esse é um dos motores da arte", disse a curadora Lisette Lagnado.
Segundo o galerista Marcantonio Vilaça, esse descompasso é maior do que se imagina. "As pessoas ainda vêem a arte como pintura acadêmica, e isso não é mais possível, assim como também não é possível apenas deslocar o objeto de seu lugar para que ele se torne arte. Mas o problema maior é partir de idéias preconceituosas, pois isso torna muito difícil tratar a arte contemporânea", disse Vilaça.
Lagnado acredita ainda que a questão principal não é a obra, mas o artista. "Desde o momento em que a arte pode ser apenas uma idéia, um conceito do artista, tudo é possível. A questão que deve ser colocada agora é o que é o autor, pois o que está em evidência é o seu pensamento", disse.
A questão do autor também é fundamental para o crítico e artista plástico Adriano Pedrosa, que acha suficiente para que um objeto seja considerado obra de arte o fato de ele ter sido produzido por um artista e estar contextualizado como tal, em um museu ou galeria.
"O interessante não é discutir o que é arte, mas sermos generosos com o nosso próprio vocabulário crítico e, por meio de nossos sistemas e linguagens, olharmos qualquer objeto e pensarmos nele dentro desse sistema de possibilidades artísticas. O interessante é observar um objeto como objeto estético ou cultural e ver que tipo de ressonância e de inteligência ele desperta", disse Pedrosa.
A questão se complica, porém, quando o objeto adquire um valor de mercado.
Para o galerista Ricardo Trevisan, a conceitualização e o pensamento que o objeto adquire ao ser deslocado de um meio ao outro, a partir do trabalho do artista, faz dele um objeto de arte. "Ele se transforma com a reflexão e o pensamento que gera", disse.
Já para o artista plástico carioca Daniel Senise, o que falta atualmente na arte contemporânea são referências e contexto. "Você precisa de um contexto para a obra de arte. Estamos em uma situação em que a produção contemporânea ficou muito descontextualizada. Você se expõe, mas ela vem sem nada antes ou depois. Perdeu-se toda a especificidade da arte".

LEIA MAIS sobre a falta de referências para a arte à pág. 4-8

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