São Paulo, sexta-feira, 18 de julho de 1997
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Prazer e charutos: bem-aventurados os puros

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Caricatura à parte, o bom do charuto é que, apesar do recente modismo, ele continua na contramão. Na virada do século anterior estava no auge, era o rei dos salões, indispensável nos bródios solenes, símbolo do prazer. Saiu de moda como a missa em latim, a música de Frescobaldi e os romances de Pitigrilli. Por isso mesmo conserva o encanto daquele "bonheur fâné" cantado por Charles Trenet -outro que saiu de moda.
Emblema da riqueza agressiva, do patronato sem entranhas, o charuto ingressou no sombrio átrio dos deuses malditos -e este talvez seja hoje o melhor de seus encantos. Fonte de prazer para seus devotos, exige liturgia para seu devido uso: um pouco de solidão, se possível de silêncio, um antes, um depois e um durante, como no ato do amor.
E mais do que o amor: afinal, o sexo é subproduto do instinto. Tal como a arte definida por Leonardo, um puro é "cosa mentale". Como o forró nordestino, charuto também é cultura. Mas, ah! -quantos crimes se cometem em seu santo nome!
O último desses crimes -e o mais grave- foi cometido por um antigo curtidor de excelentes havanas, o ex-abogado Fidel Castro Ruiz. Nos seus dias de Moncada e Sierra Maestra, na prisão da ilha de Pinos, ele fumava um dos havanas mais nobres, o Cinco Vegas.
O poder estraga o caráter e o gosto: dono absoluto de Cuba, ele bolou o abominável Cohiba -mistura vil de fumos. Seria o mesmo que um ditador francês bolar um champanhe que misturasse Dom Pérignon com um beaujolais nouveau. Como castigo, Fidel deixou de fumar e se transformou num antitabagista: mereceu.
Apesar da reação edipiana de Fidel, falar de charutos é falar de Havana, a velha e colonial La Habana, rodeada pelas plantações de Pinar del Rio, a região conhecida como Vuelta Abajo, onde nasce, floresce e se embalsama o melhor -o único- puro do mundo. Os demais são contrafações.
Não adiantou, por exemplo, que alguns fabricantes tradicionais, com selos históricos que datavam de 1742, emigrassem para a Holanda levando suas marcas e brasões. O fumo que obtiveram das sementes que levaram não era puro, resultava numa folha nascida na Jamaica, nas Honduras, em chão sem cor e cheiro. Obtiveram produtos anedóticos, consumidos por novos-ricos ignorantes, capazes de confundir um Montecristo com um Montecruz -afinal, a caixa é quase igual.
Uma exceção deve ser feita. Depois dos havanas, os únicos charutos confiáveis são os brasileiros -Brasil e Cuba se parecem na comida, na música, nas raízes africanas e no gosto pelo rebolado. Entre um Robert Burns enlatado pelos americanos ou um Dutch master bem acondicionado pelos holandeses -fumar um Ouro de Cuba da Suerdick não envergonha ninguém. E existe a excelente linha dos Alonsos Menendez -o número 1 e o número 40 podem ser equiparados aos havanas. Mas, enquanto Cuba existir, nada haverá igual aos "grands crus" de Vuelta Abajo.
São muitas as marcas e diversas as serventias. Depois de uma refeição simples, sobrando pouco tempo para a curtição de um legítimo puro, existe a linhagem dos Partagas médios, dos Upmann, dos Romeo y Julieta de linha (não chegam ainda aos grandes puros, como o Churchill) e -para o meu gosto pessoal- o Punch. Refeições nobres exigem puros idem, como o Montecristo -o mais popular dos nobres, uma espécie de "Jesus, Alegria dos Homens" na obra de Bach.
Um fumante de bom gosto evita relacionar o fumo à refeição. Os grandes, os encantadores momentos de um puro não são condicionados pela comida, pela bebida, nem mesmo pelo amor. Fruir um verdadeiro puro é, acima de tudo, abrir espaço no tempo para se ter tempo de curtir o puro.
Pode haver música ao fundo, mas não deixa de ser banal fumar um Rey del Mundo ou um Hoyo de Monterrey ao som de um cravo barroco. Tal como a comida, há que atentar para as combinações entre música e puro: uma das mais extravagantes experiências pessoais foi ter fumado um Rafael Gonzales ao som da "Sinfonia Nº 1" de Mahler. Além de já haver desperdiçado um fora-de-série, José Piñero, ouvindo aquela suíte de Granados dedicada às cidades espanholas.
Hoje, fumo meus puros em silêncio, pensando humildemente em mim mesmo, e aí o fumo é mais eficiente do que a "cannabis sativa" e a coca -produtos de índio e sabor para deslumbrados.
Deslumbrados também são os consumidores de determinadas marcas que levam o nome de grandes vinhos: Château Haut-Brion, Château-Margaux, Château-Yquem e outras grifes que deram suas logomarcas aos castelos feitos de palha. São fabricados com fumos impuros, inicialmente vindos da Jamaica -onde não há nenhum château digno do gotha dos grandes tabacos.
Por isso mesmo não mencionei até aqui o nome de Z. Davidoff -que está para os puros assim como a Casa Sloper está para a Cartier e a Bulgari. Mas há quem goste -e por aí se explica que o puro é quase uma ideologia e, certamente, um modo de caminhar pela vida, como o tango e o amarelo.

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