São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Um incêndio poético

WALTER SALLES
ESPECIAL PARA A FOLHA

François Truffaut, companheiro de viagem dos "Cahiers du Cinéma" e da Nouvelle Vague, é quem dá a dica: os filmes que ficam são aqueles que abrem portas, que dão a impressão de que o cinema começa novamente com e a partir deles. Como "Acossado".
Quando surge em 1959, "Acossado" ("A Bout de Souffle") implode o esclerosado cinema francês, representado por diretores como Delannoy ou Cayatte. Godard se apoderou das convenções do filme de gênero (crime policial, perseguição, traição e morte) para melhor subvertê-las. Longe de ser um exercício desconstrutivista de um racionalista europeu, "Acossado" é um incêndio poético, para retomar o termo criado por Luis Rosemberg Filho. É um ato de amor fílmico, uma profissão de fé na vida, na imperfeição da vida, representada na imagem granulada do Tri-X, em oposição à produção asséptica, higiênica do filme de estúdio que se fazia na época.
Em "Acossado", não é tanto a história que importa (pequeno gângster, Belmondo tenta escapar da polícia com a cumplicidade de uma jovem americana, Jean Seberg), mas sim a possibilidade de romper com uma estrutura narrativa clássica. Surge uma maneira radicalmente nova de colar planos (colisão), de fotografar (graças a Raoul Coutard), de dialogar. Mais do que o filme-manifesto que anunciou a Nouvelle Vague, "Acossado" é o filme que irrigou e irriga até hoje o cinema moderno. Não haveria cinema novo, não haveria "Mean Streets" (de Martin Scorsese), nem o atual cinema independente americano (do "Stranger than Paradise" de Jim Jarmush, até Tarantino, passando por Jost e Hartley) sem a explosão criativa de "Acossado".
Não haveria também o lirismo exacerbado de "O Desprezo", nem a avalanche inventiva de "Pierrot le Fou" ou a visão iluminada de "Viver a Vida", que confirmam JLG como um dos realizadores essenciais da história do cinema. E, se hoje o prolongamento da sua obra se justifica mais pelo uso letal da palavra do que da imagem, em frases como "a televisão só fabrica o esquecimento", é preciso lembrar que Godard permanece sendo um dos mais importantes pensadores contemporâneos. Um jato de luz e inteligência numa Europa infestada de Bernard-Henry Lévy(s)...
Godard não produziu o esquecimento e sim aquilo que o cinema pode oferecer de melhor: a possibilidade de tornar visível, gerar o questionamento, atingir a permanência. Ninguém pode empunhar uma câmera sem agradecer a explosão libertária do seu "Acossado".

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