São Paulo, domingo, 27 de julho de 1997
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Bisturi e batom

ADRIANA VIEIRA; GABRIELA MICHELOTTI

"Resolvi não olhar mais para essa história de machismo. Eu penso: Vou me esforçar em dobro e pronto"
(Maria Irma Seixas Duarte, patologista)
"Sou um modelo. Quando as pessoas dizem que uma mulher não pode ser cirurgiã, logo lembram de mim"
(Angelita Herber Gama, cirurgiã gastrenterologista)
POR ADRIANA VIEIRA E GABRIELA MICHELOTTI
Mais um feudo de domínio masculino acaba de ceder. A "invasora" é a patologista Maria Irma Seixas Duarte, 54; o reduto é o formado pelo seleto grupo de 45 professores-titulares da Faculdade de Medicina da USP.
Rompendo um jejum de 96 anos na história da faculdade, Maria Irma venceu quatro homens na disputa pela vaga de titular, o topo da carreira acadêmica. O concurso foi tumultuado porque o candidato que teve a pior colocação entrou com um recurso contestando o mérito de um dos examinadores.
"O recurso gerou turbulências e atrasos na minha indicação, mas eu não diria que a condição de mulher tenha interferido. Como em qualquer instituição, há grupos que se formam e que, provavelmente, têm interesse em outros candidatos", diz a patologista.
Embora não tenha sentido a força do machismo no concurso, Maria Irma diz que para se sobressair na medicina teve de se esforçar muito mais que um homem. "Eu sempre lembro do que um amigo me dizia quando eu fazia residência: 'Se eu, como homem, vou precisar de um esforço 'x' para fazer alguma coisa, pode estar certa de que você terá de fazer '2x'. Eu incorporei isso e resolvi não olhar mais para essa história de machismo. Eu penso: 'Vou me esforçar o dobro, e pronto'."
O patologista trabalha nos "bastidores" da medicina. É quem estuda a origem e os mecanismos das doenças. "Se a pessoa tem um tumor, pela biópsia, o patologista analisa a origem e o mecanismo da lesão, faz o diagnóstico e, muitas vezes, opina no tratamento", explica Maria Irma. Faz parte também das atividades do patologista a autópsia, o exame de cadáveres.
Maria Irma virou professora na Faculdade de Medicina da USP em 1974. Era auxiliar de ensino. Além da atividade didática com os graduandos e de orientar residentes, ela faz pesquisas no Laboratório de Doenças Infecciosas. Entre os trabalhos que ajudou a desenvolver, está o método de microscopia eletrônica para diagnosticar doenças como a Aids. "Com essa técnica, conseguimos em horas o resultado do exame que antes demorava dias."
Essa não é a primeira posição pioneira de Maria Irma. Em 1977, foi a primeira mulher a assumir o cargo de médica no Laboratório Fleury, no Serviço de Anatomia Patológica.
Maria Irma parece ter aberto as portas para outras mulheres. No próximo mês, a infectologista Maria Aparecida Shikanai Yasuda, 52, será a segunda professora-titular da Faculdade de Medicina da USP, no Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias. Ela ocupará a vaga do renomado infectologista Vicente Amato Neto, ex-secretário estadual da Saúde (governo Fleury).
Formada pela USP, no campus de Ribeirão Preto, e há 25 anos lecionando na universidade, ela concorreu com dois homens. Sua indicação foi homologada por unanimidade na congregação da faculdade.
Por ter sido indicada titular, Maria Aparecida assumirá a direção da Divisão Clínica de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas. Isso significa comandar uma equipe de 58 pessoas, que atende até 3.000 pacientes por mês.
"O fato de Maria Irma ter sido indicada titular deve estimular as mulheres a galgarem posições como essa na universidade. Poucas têm concorrido por causa da jornada dupla e por questões culturais", diz Maria Aparecida.
Pacientes machistas
Poucas mulheres chegam aonde essas "duas Marias" chegaram. A medicina ainda é uma profissão predominantemente masculina. Segundo a pesquisa Perfil dos Médicos no Brasil, feita pelo Conselho Federal de Medicina e pela Fundação Oswaldo Cruz, as mulheres representam apenas 33% dos 183.052 médicos do país.
Além de serem minoria, elas enfrentam o machismo de colegas e pacientes, como apontou a mesma pesquisa, na qual 30% das médicas afirmaram encontrar obstáculos no exercício da profissão (leia depoimentos de pacientes na pág. 14).
"As mulheres sentem falta de estímulo dos professores na escolha da especialização, são menos reconhecidas e têm mais dificuldade em conseguir promoções", diz a médica Regina Ribeiro Parizi Carvalho, 42, que trabalha no setor de epidemiologia do Hospital do Servidor Público Estadual, é coordenadora-geral da pesquisa e atual vice-presidente do Conselho Federal de Medicina.
"Eu me formei há quase 20 anos. Na época, 20% das alunas eram mulheres, mas faltavam modelos e professoras nas quais pudéssemos nos mirar", diz a infectologista Beatriz Souza Dias, a única médica chefe de área do Hospital Sírio Libanês.
Beatriz se lembra de várias barreiras que enfrentou, principalmente no início da carreira. "Uma vez, tratei um paciente gravíssimo, que melhorou bastante, com um tratamento de sucesso. Em uma segunda internação, ele pediu ao colega cirurgião que o clínico fosse homem", conta Beatriz.
O preconceito parte também dos próprios médicos. "Durante a residência, eu notava bloqueio de alguns médicos mais experientes pelo fato de ser mulher", diz a cirurgiã do aparelho digestivo Maria José Femenias Vieira, professora-doutora da Faculdade de Medicina da USP.
Medo do desconhecido
A condição de mulher acaba muitas vezes interferindo na escolha da especialização. A pesquisa do Conselho Federal de Medicina mostra que as mulheres seguem áreas consideradas mais "femininas" e que proporcionam jornadas de trabalho fixas, como dermatologia, pediatria, ginecologia e saúde pública.
"Na minha época de faculdade, a maioria das mulheres fazia pediatria e ginecologia. No começo, pensei em pediatria. Cheguei a fazer estágio em um hospital, mas me decepcionei. Então, descobri a patologia, fui para o laboratório e percebi que minha vocação é pesquisa básica", afirma Maria Irma.
Áreas como cirurgia são até hoje refratárias ao sexo feminino. "Quando se entra em um laboratório de anatomia para dissecar um cadáver, dá medo do desconhecido. Mas você começa aos poucos. Primeiro, disseca um tecido de osso, depois músculo, faz cirurgia em um cachorro. Quando se depara com uma operação humana, não há mais medo", diz a cirurgiã gastrenterologista Maria José.
Outra que não se intimidou diante de uma mesa cirúrgica foi Angelita Habr Gama, professora-associada da USP e médica de vários empresários e políticos, incluindo o vice-presidente da República, Marco Maciel, operado por ela.
"Fui a primeira mulher a fazer residência na área de cirurgia do aparelho digestivo no Hospital das Clínicas. Foi difícil, porque eu estava em um meio liderado por homens. As mulheres exerciam mais profissões colaboradoras. Os chefes de residência diziam que cirurgia era para homem. Tive de redobrar os esforços e provar que mulher também podia operar", diz.
Angelita conta que, no começo, encontrou dificuldades para ser aceita pelos pacientes. "Primeiro, só vinham mulheres. Aos poucos, elas trouxeram os maridos e amigos e, assim, fui conseguindo uma clientela dos dois sexos."
No Hospital das Clínicas, principalmente quando era mais jovem, chegou a ouvir comentários como: "Quando o médico vai chegar?". "Os pacientes sempre estiveram acostumados com cirurgiões homens. Eles estranhavam, mas eu dizia: 'Eu sou doutora'. Talvez pelo meu modo de agir, acabei sendo bem aceita. Sou uma lutadora."
Necrópsia e supermercado
Conciliar "plantões, cirurgias de sete horas, necrópsias" e "dar ordens para a empregada, ajudar o filho a fazer lição-de-casa e preparar um jantar para o chefe do marido" não é nada fácil. Muitas médicas bem-sucedidas acabaram optando por não ter filhos ou tiveram de retardar etapas da sua carreira para se dedicar à família.
"Quando fiz a minha primeira tese, minha filha nasceu com um problema de saúde. Tive de parar o trabalho e me dedicar a ela. Depois, voltei à pesquisa. Sempre tentei equilibrar os dois lados. Quando estava em casa e as minha filhas acordadas, eu ficava com elas. Quando dormiam, eu estudava", explica Maria Irma, casada há 30 anos e com duas filhas (uma de 25 anos, e outra de 26).
Para Maria Aparecida Shikanai Yasuda, casada há 23 anos e duas filhas, conciliar a profissão com a família sempre foi uma dificuldade. "Trabalho cerca de 12 horas por dia e ainda atendo pacientes graves no fim-de-semana. Minha profissão exige sacrifício da família, que sempre colaborou muito comigo. De certa forma, tive de priorizar minha carreira em alguns momentos. Se eu não tivesse filhos, provavelmente não teria demorado dez anos para fazer a livre-docência."
Algumas médicas optaram por não ter filhos. A infectologista Beatriz Souza Dias, solteira, afirma: "Sempre digo aos meus colegas que eles são privilegiados por terem uma mulher que os apóia na profissão e que cuida da vida familiar e social deles. Nós mulheres não temos ninguém para fazer isso."
Ela diz que sua decisão de não ser mãe foi inconsciente. "Meu pai era médico e sempre me dizia que, se eu escolhesse a medicina, teria de abrir mão de casar e ter filhos. Era um preconceito que influenciou o meu comportamento. Mas acho que dá para uma médica ter família."
Casada há 33 anos com um engenheiro, Anneliese Fischer Thom afirma que, se tivesse filhos, provavelmente não estaria na posição que ocupa hoje no Hospital Albert Einstein. Anneliese, 62, dirige o Serviço de Medicina Nuclear do hospital, setor responsável por fazer diagnóstico por meio de substâncias radioativas.
"Quando optei pela medicina nuclear, no início dos anos 60, havia poucas mulheres. Hoje, elas têm posições muito fortes no ramo, porque é uma especialidade em que se adaptam bem. Exige-se meticulosidade e, acima de tudo, os exames não são invasivos, como o caso de uma cirurgia, que pede uma personalidade mais forte", afirma Anneliese.
Ela diz que não planejou o fato de não ter filhos. "Mas, provavelmente, se eu tivesse crianças, não trabalharia tanto. Acho que não dá para se dedicar totalmente à medicina e ao mesmo tempo à criação dos filhos. Se o médico fica até mais tarde no consultório, a mulher sempre aceita. Já a médica, se não chega no horário, será cobrada."
Por causa da profissão, a cirurgiã Angelita e seu marido -o também cirurgião gastrenterologista Joaquim José Gama Rodrigues- decidiram não ter filhos. "Como fui a primeira mulher residente na minha área, o meu caso deveria ser tomado como exemplo. Se eu falhasse, seria mais difícil para as outras conseguirem. Acho que sou um modelo. Quando as pessoas dizem que uma mulher não pode ser cirurgiã, logo lembram de mim. Não sinto falta de filhos. Talvez se os tivesse, não estaria tão realizada como hoje."
Mesmo com uma rotina de até 15 horas diárias de trabalho, incluindo longas cirurgias, Angelita arranja tempo para cuidar da aparência. Está sempre com os cabelos loiros arrumados. "Não é porque sou cirurgiã que vou deixar de me cuidar. Desde pequena adoro coisas bonitas. Um dos meus maiores prazeres é comprar roupas, perfumes e maquiagens."
Provando que a medicina não cura a vaidade, três entrevistadas para essa reportagem não quiseram revelar a idade. "Se Catherine Deneuve tem mesmo 54 anos, posso dizer que sou mais nova que ela", desconversa uma das cirurgiãs.

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