São Paulo, segunda-feira, 28 de julho de 1997
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A polícia vem que vem brava

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

"A polícia vem que vem brava/quem não tem canoa, cai n'água." Cantávamos assim na infância e a canção me vem à mente agora que as polícias militares ocupam as ruas do país.
Ouço muitas perguntas: até onde vai, qual a saída, como se chegou a isso? Tenho, às vezes, a sensação de que estamos na peça "Esperando Godot". Discutimos, discutimos e nada acontece. Os personagens diziam: precisamos ir, e ficavam no mesmo lugar. Aqui dizemos: precisamos pagar mais, mas não sabemos quanto nem onde buscar o dinheiro.
Os salários dos policiais são intoleráveis. Mas duvido que a solução seja apenas aumentá-los. A estrutura das PMs é muito pesada: coronéis, capitães, toda essa hierarquia criada para uma guerra e portanto ineficaz para os problemas específicos de segurança.
Outro dia em Minas, uma mulher foi assaltada e reclamou do PM. Ele disse, diante das câmeras: isso não é comigo, pois sou músico.
Tudo bem que desenvolvam seus talentos musicais. Mas não deveria haver especialização. Se for mesmo necessário uma bandinha, por que não usar reformados, pagando como free-lancers? Caso contrário, os dois ou três Cisne Branco que tocam anualmente saem uma fortuna para o contribuinte.
As classes dominantes brasileiras fizeram um pacto sinistro com a polícia, mantendo-a quase no mesmo nível que jagunços. Tolera-se a violência contra os indivíduos, garante-se uma certa impunidade funcional, mas não se investe o dinheiro e o respeito social que os policiais merecem. Eles, em certos momentos, se acham os bambambãs torturando e espancando. Mas não percebem estão torturando suas próprias condições de trabalho.
Mas como uma classe dominante tão necessitada de segurança deixou sua polícia empobrecer radicalmente? Uma das respostas pode ser encontrada no próprio exame da saúde pública. Ricos e remediados se viram com segurança particular. Famílias, condomínios, clubes, lojas, shoppings, todos lançam mão de empresas especializadas.
A polícia na verdade ficou com a missão de reprimir e proteger os pobres. Mas os soldados não podem viver em favelas. Um dos temas mais comuns agora é criar cooperativas de casa própria para que os soldados possam viver em paz.
Isso aumenta a segurança deles. Mas, por outro lado, lança uma mensagem inquietante para o morador da favela.
Se o soldado não pode morar aqui e a polícia só entra em formação militar e com todas as precauções, como passaremos as noites?
O morador dos lugares pobres sente-se como um navegante num mar de piratas ou viajante medieval numa estrada infestada de salteadores.
Interessante nisso tudo é como o governo cede território à noite, um pouco como os norte-americanos no Vietnã. De noite, nas áreas mais pobres, quem manda é o narcotráfico.
Quando o Exército subiu as favelas do Rio, havia a preocupação de içar a bandeira nacional. Se a bandeira ainda estivesse lá, seria furada por tiros, cada tiro uma estrela, o verde de nossa mata, o amarelo do nosso ouro, o azul do nosso céu, tudo isso iria para o beleléu, pois para a estrutura do poder no morro o que importa não é nem o preto-no-branco, mas o preto e o branco, a maconha e a cocaína.
Os norte-americanos continuam pressionando. Querem resultados no combate ao tráfico de droga. Para eles, cada vez mais é necessária uma postura militar nesse campo. Vai nos empurrando para uma guerra sem horizontes, amparados pelos burocratas nacionais que gravitam em torno de sua ajuda, ou mesmo dos demagogos que prometem vitória contra o tráfico.
Pois, nas circunstâncias atuais, em que o dinheiro sobra do lado do narcotráfico e escasseia dramaticamente entre soldados famintos, não são animadoras as perspectivas. Sempre que se encontrarem traficantes e policiais, a possibilidade de suborno e cooptação estará no ar.
Tenho uma ponta de pessimismo com o Brasil. Acabo de ler o livro de Warren Dean sobre a Mata Atlântica. É impressionante como fomos destruindo tudo até chegarmos a deserdar as novas gerações, a legar um deserto.
Certos problemas como esse da segurança pública parecem superiores à nossa capacidade de solucioná-los. Era preciso coragem para reformar e sobretudo para aguentar as consequências.
A polícia tem de se basear em informações e conhecimentos científicos, tem de ser enxuta e muito bem paga.
Basta enunciar essa possibilidade de mudança de paradigma para que o fantasma salte à mesa. E o desemprego? Dificilmente uma solução radical não levaria ao desemprego no setor. Teríamos de buscar a saída por outro lado, o da reciclagem e colocação num mercado de trabalho flexível.
A tendência mais forte é a de empurrar com a barriga. Um pequeno aumento e não se fala mais nisso.
Gostaria de voltar ao tema com alguns dados. Não é verdade, na minha intuição, que os brasileiros não investem em segurança. Investem muito, só que em segurança privada. É um setor que absorve muita gente e deve continuar assim, apesar do crescimento da indústria dos equipamentos.
A polícia no Brasil se tornou um instrumento para controlar os pobres. E são tantos os pobres que disputam o privilégio de controlar seus vizinhos que as fardas se esgarçaram, os coturnos furaram e todos se igualam de novo na pobreza quase absoluta.
Se fosse num outro planeta, talvez pudéssemos ficar distantes do tema, divertindo-nos para ver como as elites se livram do problema que cavaram historicamente. Para nós, que ouvimos quase toda noite o "ratatá" das metralhas, a passividade é a pior saída.
Quando era menino cantava a vinda da polícia e pensava em me atirar n'água. Agora não, ela vem que vem brava e nosso dever é encará-la com respeito e uma vontade sincera de solucionar o problema, falsamente apresentado como "o problema da polícia".
O Brasil, em certas áreas, tem uma forte tendência à autodestruição. Se depender da resposta de cada um à possibilidade de sair da crise, ela deve ser: positivo, operante, como dizem os policiais no programa "Casseta & Planeta Urgente".

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