São Paulo, quarta-feira, 30 de julho de 1997
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A crítica dos críticos

DANIEL AARÃO REIS FILHO
IZAÍAS ALMADA

DANIEL AARÃO REIS FILHO; IZAÍAS ALMADA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na crítica que faz ao livro "Versões e Ficções: O Sequestro da História" (Folha, 15 de julho de 1997), o escritor Marcelo Rubens Paiva afirma que "muita tinta é gasta para desqualificar Gabeira...", como se o livro fosse uma espécie de lavagem de roupa suja entre antigos companheiros que "resistiram à ditadura" (as aspas são do crítico).
Nem todos no livro são antigos companheiros de Gabeira. Mas cada um lê como quer.
Essa, como tantas, é até uma das leituras possíveis da obra, mas redutora de uma das temáticas ali propostas: a não conciliação crítica com a ditadura militar que assaltou o poder em 1964. Mais uma vez o perfunctório assume o lugar do principal.
Ao contrário do que afirma o crítico, o leitor não se frustra com a leitura de "Versões e Ficções". O que se pode inferir das várias opiniões expressas na coletânea, entre outras, é a de que, em arte, no caso o cinema, "História" e "Ficção" não são necessariamente as duas faces de uma mesma moeda.
Não se justapõem por um ato de vontade estética. Podem caminhar juntas, valorizarem uma à outra, interpenetrarem-se, mas sempre e quando a ficção não for utilizada para falsear ou ilegitimar o fato histórico. A propósito, em casos dessa natureza -o do "thriller" político-, o mais usual é a ficção ajudar a reparar injustiças que a História registra e que foram cometidas por governos ou poderosos contra minorias ou cidadãos.
É possível citar os filmes "A Confissão" (sobre um dissidente tcheco), "Sacco & Vanzetti", "Mississipi em Chamas" (sobre o problema racial nos EUA), bem como os nossos "O Caso dos Irmãos Naves" e "Nunca Fomos tão Felizes". Um tipo de cinema onde a ficção investiga a História e o espectador, sem que os fatos sejam adulterados, pode fazer sua leitura crítica com maior clareza e sensibilidade.
Buscar em "Versões e Ficções: O Sequestro da História" apenas as indicações de uma provável exasperação dos articulistas contra Gabeira e seu livro, o mesmo que dá origem ao filme "O Que É Isso, Companheiro?", é mais uma vez desviar os olhos da questão de fundo, questão essa que vale repetir: tanto o livro de Gabeira quanto o filme de Bruno Barreto tentam edulcorar para as novas gerações o que foi a ditadura militar brasileira.
Contra essa visão, e não só, muitas vozes se levantaram na imprensa, fato que levou a editora Fundação Perseu Abramo, com sensibilidade, democrática e atempadamente, reuni-las numa mesma publicação. Não cremos que haja, para os articulistas, de modo geral, meios-tons, picuinhas ou questões pessoais.
Quiseram, alguns dos que escreveram sobre o filme de Barreto, trazer a discussão para um terreno que talvez lhes seja mais sensível: o das idéias políticas. Para esses, poderia até ser outro o enfoque, não tivessem o escritor e o cineasta escolhido o "plot" que escolheram e da maneira que escolheram.
Como diz Emir Sader no seu artigo, à pág. 107, citando um provérbio africano: "Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão glorificando o caçador". É provável que o filme "O Que É Isso, Companheiro?" tenha cutucado alguns leões com vara curta...

Daniel Aarão Reis Filho é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense. Izaías Almada é escritor e roteirista, autor do romance "Florão da América" (editora Estação Liberdade). São dois dos autores que tiveram seus artigos publicados em "Versões & Ficções: O Sequestro da História".

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