São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Quem guardará os guardas?

ROBERTO CAMPOS

"Quis custodiet ipsos Custodes?" (Quem guardará os guardas?)
Juvenal, poeta romano, no quinto livro das "Sátiras" (século 2)

Na América Latina, os dois únicos países considerados "investment grade" pelas agências internacionais classificadoras de risco são o Chile e a Colômbia. A despeito de seu potencial superior e sua atividade para investimentos diretos, o Brasil paga juros mais altos que Argentina e Uruguai. Os financistas não se esquecem de nossa "moratória soberana", de 1987, durante a qual suspendemos pagamentos sem qualquer satisfação aos credores. E sabem que nossa cultura do calote é tão profunda que a Constituição brasileira de 1988 é a única do mundo que, em suas Disposições Transitórias, constitucionalizou quatro infidelidades contratuais: moratória de oito anos para pagamento de precatórios judiciais (art. 33); perdão da correção monetária para pequenos e médios empresários e produtores rurais (art. 47); parcelamento em dez anos dos débitos de Estados e municípios referentes às contribuições previdenciárias (art. 57); reexame pericial da dívida externa com vistas à anulação unilateral dos contratos internacionais tidos por irregulares (art. 26).
É escusado dizer que (exceto no caso de microempresas) essas acomodações só beneficiam as dívidas do setor público. Os devedores ou contribuintes privados estão sujeitos a multas, execução e falência. Só os estatais são imunes a tais "baixarias"...
O assunto candente no momento, no Congresso e na mídia, é a emissão de títulos por Estados e municípios para cumprimento de sentenças judiciais.
Nas democracias anglo-saxãs, cujo modelo imitamos, existem os "Committees of Inquiry" (Comitês de Análise ou Investigação) sem as conotações policialescas que no Brasil cercam a palavra "inquérito". Esta implica subliminarmente a existência de "culpados". Entretanto, a função mais importante é a que eu chamaria de "mudança de clima", isto é, a contribuição das CPIs para alterarem duradouramente o comportamento da sociedade. É uma função normativa, não inquisitorial, e por isso pouco excitante para os holofotes da mídia. Sob esse prisma, a CPI dos Precatórios, longe de resultar em pizza, provou-se extremamente valiosa. Doravante, Estados e municípios serão mais cautelosos nas emissões de títulos. O Senado as examinará menos perfunctoriamente. O Banco Central (BC) será mais conclusivo em suas recomendações. E as praxes do mercado de capitais, menos ousadas e bucaneiras. Ao que saiba, todos os membros da CPI aceitaram o projeto de resolução proposto pelo relator, senador Roberto Requião, para disciplinamento das operações de crédito de Estados e municípios, visando procedimentos, limites e responsabilidades. Essa peça legislativa merece maior atenção que os orgasmos acusatórios do relator na televisão, úteis para sua autopromoção política.
Cabulosa e difícil é a alocação de culpas, por dois motivos: a) sobram culpas para todos; b) políticos partidários não são professores de ética e adoram destruir chances eleitorais dos rivais.
Usei a expressão "sobram culpas para todos" porque há uma espécie de culpa circular. A equipe econômica do governo fabricou um coquetel explosivo de déficit fiscal financiado por maciço endividamento mobiliário, fazendo precisamente o que critica nos Estados. Com isso dispararam as taxas de juros, asfixiando-se o setor privado, enquanto os títulos de hierarquias inferiores (Estados e municípios) se tornaram invendáveis sem grotescos deságios. O BC, guardião da moeda, coonestou esta política. Tornou-se um "gestor temerário", pois desde a implantação do Real a dívida interna triplicou, passando de R$ 90 bilhões para R$ 280 bilhões. Coisa semelhante aconteceu com o Senado. Este, ao sancionar as emissões de Estados e municípios, sem estabelecer ressalvas ou balizar comportamentos, legitimou o giro dos títulos no mercado financeiro. Sabia-se que a função desse mercado é criar liquidez e ganhar dinheiro, e não lecionar ética. Diga-se de passagem que ocorreram milagres de marketing, ao se encontrarem tomadores finais para títulos das Alagoas, coisa tão difícil como vender geladeiras a esquimós ou aquecedores no Saara... Os Estados e municípios, obviamente, têm culpa na medida em que excedam os limites constitucionais de emissões para precatórios, ou desviem recursos para outros fins. Caberia aqui ligeira menção a um dos "paradoxos" da estabilização monetária trazida pelo Real. Extinguiu-se o financiamento inflacionário com que contavam as várias unidades federativas para mascarar seu estado falimentar. No tocante aos precatórios, a praxe institucional era inscrever-se no Orçamento o respectivo valor atualizado em 1º de julho, para pagamento 18 meses depois, com erosão inflacionária intercorrente. Calculam alguns peritos que a um nível inflacionário médio de 25% ao mês, prevalente em 1992/93, anteriormente ao Real, um crédito original teria em moeda constante, após 18 meses sem correção, um valor equivalente a 2% do inicial; por contraste, à taxa atual de inflação de 7,5% ao ano, esse mesmo valor corresponderia a 90% do crédito original. A ecologia financeira mudou dramaticamente, impondo mais prudência a administradores e juízes...
Naturalmente, se todos têm culpa, todos também têm desculpas. O Executivo pode argumentar que sua farra de endividamento se deve a que o Legislativo não aprova as reformas, ao mesmo tempo em que o Judiciário, com suas liminares, atrasa as privatizações. "Em casa onde não há pão, todos gritam e ninguém tem razão", diz o brocardo.
A segunda dificuldade das CPIs na distribuição de culpas é que grupamentos político-partidários raramente têm imparcialidade analítica. Por exemplo, o encarniçamento de senadores do PT e PSDB contra o ex-prefeito Paulo Maluf e o prefeito Celso Pitta não se baseia num abstrato anseio de moralidade administrativa. Há uma preocupação partidária de inviabilizar a candidatura presidencial do primeiro, e de ir à forra contra a vitória eleitoral do segundo, que derrotou esses dois partidos nas eleições municipais. Registre-se também o comportamento aberrante do BC que, dez dias antes das eleições de outubro último, vazou relatório confidencial que denunciava supostos prejuízos na venda de títulos paulistas, sem comprovação nem tempo de resposta. Isso indica uma perigosa politização do BC, comparável à conhecida infiltração petista no Ministério Público e na Receita Federal.
O resumo da ópera que descrevi é que as CPIs são muito mais úteis para provocar mudanças no clima cultural do que para fundamentar processos judiciais que exijam provas concretas, em processo contraditório.
Citemos os dois fatos mais fundamentais sublinhados, com retórica raivosa, pelo relator da CPI dos Precatórios. Acusa-se o prefeito Pitta de ter ultrapassado, em R$ 1,3 bilhão, os limites constitucionais de emissão. Em sua exposição no Senado, que ocupa 117 páginas e não foi objeto de análise fundamentada do relator, o prefeito demonstra precisamente o oposto. O valor total atualizado dos precatórios pagos ou programados no período 1989/97 é de R$ 4,155 milhões. Só foram emitidos R$ 3,618 milhões de títulos, restando um saldo de R$ 537 milhões. Caberia no mínimo uma auditoria para desempate entre esses dados...
Outro ponto fundamental é o endosso do relator à alegação do BC, o qual, após pinçar meia dúzia de operações isoladas, denuncia "prejuízos" na manipulação financeira nos títulos pela prefeitura. Ora, o Fundo de Liquidez da prefeitura é um "fluxo" e os balanços dos anos 1995/96, auditados pelo Tribunal de Contas do Município, acusam um lucro líquido de R$ 140 milhões. Onde estará a razão? Análises pontuais são perigosas. Quem analisar isoladamente a desvalorização cambial de 6% promovida pelo BC em março de 1995, após a crise do México, imputar-lhe-á a responsabilidade pela perda de US$ 9 bilhões de reservas!
Num horizonte de tempo mais longo, entretanto, houve saudável recuperação das reservas, corrigindo-se a "trapalhada" inicial. Pessoalmente, como macroeconomista, acho mais inquietante o endividamento "bola-de-neve" do BC, entidade que ajudei a criar em 1964, e que se tornou um Frankenstein, do que as finanças do município de São Paulo...
Revisitando o Senado, casa em que servi oito anos como senador por Mato Grosso, assisti acidentalmente à última sessão da CPI dos Precatórios em 23 de julho último. Algo surrealista. O relator não compareceu, alegando que seu relatório fora aprovado na véspera. Os presentes argumentaram que suas "emendas" e "votos em separado" não haviam sido lidos e muito menos prolatados, encurtando-se ilegitimamente o ritual e o calendário de votação. Assim, o relatório do dia anterior seria apenas um "documento do relator" e não o "relatório da comissão". Haverá uma batalha regimental na Comissão de Constituição e Justiça, tornando pertinente a pergunta satírica de Juvenal: "Quis custodiet?" O relator dirá que sua verdade é a verdadeira e a dos outros, "pizza". Os dissidentes proclamarão o oposto. Em sua sabedoria milenar, os chineses cunharam o provérbio: "Há sempre três pontos de vista -o seu, o meu e o verdadeiro".

Texto Anterior: Hospitalidade janista
Próximo Texto: A vitória do perdedor
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.